domingo, 9 de setembro de 2007

Sent. Erro

Vistos, etc.
C. A. N., P. M. P. e O. L., qualificados nos autos, respondem à presente ação penal iniciada par denúncia do Ministério Público, em 11 de novembro de 1991, como incursos nas penas do art. 121, §§ 3º e 4º, do Código Penal Brasileiro, por haverem, em sua condição de médicos, «em face de imperícia e negligência, caracterizadas por omissão em atendimento médico-hospitalar, concorrido para o óbito de L. A. M. L.». Segundo a peça inicial, entre as 7h30min e 8 horas do dia 11 de junho de 1991, acometido, na noite anterior e pela madrugada, de vômitos e diarréia, em duas ou três oportunidades, o menor L., de 2 anos e 8 meses de idade, foi atendido na Policlínica “...A...”, nesta satélite, pelo Dr. C. (o primeiro réu), o qual prescreveu-lhe medicação compatível com o quadro de infecção intestinal, recomendando fosse a criança internada naquela clinica e submetida a hidratação endovenosa. Após algumas horas da internação, já medicado, L. voltou a regurgitar, ministrando-lhe a enfermeira E. M. - por ordem do Dr. C. - dose de Plasil na veia. Desde então, L. passou a apresentar crescente mal-estar, inquietação e frio, como se não estivesse reagindo bem ao medicamento, agravando-se visivelmente o seu estado de saúde. Diante desses sintomas, às 14 horas, mais uma vez sem proceder a qualquer observação direta do paciente, determinou o Dr. C. que a mesma enfermeira aplicasse um tranqüilizante intramuscular (provavelmente Valium) na criança. Já por volta das 17 horas, inobstante o estado combalido da criança, o Dr. C. resolveu dar-lhe alta médica. Antes, porém, ministrou-lhe nova dose de Plasil endovenoso. Logo em seguida a isso, L. teve a primeira crise convulsiva (seguida de parada cardiorespiratória) de uma série de inúmeras crises que sofreria dali em diante, sem que recebesse a assistência médica adequada. Mesmo após essa convulsão e da referida parada cardiorespiratória, desconhecendo ao certo o que as motivava (imaginava resultasse do Plasil) e sem saber diagnosticar o mal que acometia o menor, contra todas as evidências sugestivas de prudência e atenção redobradas, o Dr. C. insistiu em dar 'alta' ao paciente, entre outros argumentos, porque a criança «estava bem de saúde» e «a Clinica “...A... não funcionava à noite».

Desse modo, prossegue a denúncia, o Dr. C. concorreu, por omissão culposa (negligência e imperícia) para o resultado morte - previsível nas circunstâncias e que poderia ter sido evitado - que sobreveio a L. A. Primeiro, porque negligenciou ao não acompanhar diretamente a vítima durante a internação, em momentos críticos (omissão que o levou, inclusive, a ministrar, pela segunda vez, o medicamento Plasil, que a reação da criança à primeira dose já revelara não ser aconselhável, agravando-lhe o quadro clínico). Faltou, assim, com o dever de cuidado objetivo que seria de exigir-lhe, na condição de médico de plantão que internara o paciente. Demais disso, seus atos revelaram imperícia: ao contrário do que devia, podia e lhe era exigível nas circunstâncias, não detectou ele - dependendo o diagnóstico senão de observação e exames gerais, os quais, presumidamente, sendo médico, estaria apto a realizar - que mal gravíssimo acometia L., fosse em razão da medicação ingerida, fosse por motivo de enfermidade, ao que evidenciava a constatação, naquele menor, de convulsão, parada cardíaca, apatia, frieza, perda de sentidos, não reação ao soro e a medicamentos, etc.

O Dr. C. foi negligente, ainda, ao dar 'alta' a L. quando este se encontrava em estado sofrível de saúde, faltando, assim, ao especial dever de agir para evitar resultado previsível (morte), seja não o submetendo a rigorosa e continua observação pessoal até a superação da crise e o efetivo diagnóstico da doença, seja não o encaminhando pessoalmente a hospital aparelhado e especializado no tratamento de enfermidade de risco que o quadro demonstrava. Somente por insistência veemente dos pais de L., o referido médico, ressaltando a desnecessidade da cautela, aquiesceu em encaminha-lo a outra clinica (sem UTI), comunicando ao médico que iria ali recebê-lo (Dr. P.) ser bom o estado de saúde do paciente. Sequer providenciou transporte adequado à remoção, em que pese encontrar-se a vítima no soro e inconsciente.

Também os dois outros denunciados, prossegue a inicial, que sucessivamente assumiram o tratamento do paciente, concorreram para o resultado típico. Com efeito, pouco mais tarde (20 horas) na Clinica “...B...”, o Dr. P., embora diagnosticando estivesse a referida criança «em apatia profunda e subconsciente», em «estado grave», limitou-se a interna-la e mantê-la no soro. E, conquanto logo após essa segunda internação fosse L. acometido de seguidas convulsões (ao menos três), o Dr. P. deixou de tomar os cuidados e cautelas que o gravíssimo quadro exigia, igualmente omitindo-se por imperícia (não atentou para a extensão do mal que acometia o paciente, embora previsível o desfecho diante da renitência das convulsões, inobservando regra básica da profissão) e por negligência (aguardando que a situação, por si, fosse contornada, desde que os medicamentos que prescreveu não fizeram efeito algum), faltando com seu dever profissional de agir para evitar o resultado morte, notadamente o de transferi-lo para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), que a Clinica “...B...” não possuía, e entregando-se à assistência de especialistas.

Chegando ao local às 22 horas e cientificado das medidas até então adotadas em relação ao menor (inclusive, quando da primeira internação), o Dr. L. encontrou L. em sono profundo (estado semicomatoso) e acometido de freqüentíssimas convulsões. Mesmo assim, o Dr. L. não agiu conforme recomendava diagnóstico tão crítico. Ao invés de providenciar a imediata remoção de L. para um hospital dotado de UTI (atitude indispensável na situação, ao que se vê das respostas aos quesitos IX, e, e X, a e b, Complementação ao Laudo Cadavérico nº 1335/91-IML, (fl. 88 do IP), o Dr. L. manteve, par quase três horas, a criança sob seus cuidados, ainda que não fosse neurologista, nem dispusesse, em sua clinica, de instrumentos e aparelhos requeridos para tratamento de patologia gravíssima - fosse qual fosse -, conforme evidenciavam os reveladores sintomas.

Ao não detectar a gravidade da doença, extrinsecamente evidente, nem formalizar as providências que seriam dele exigidas, omitindo-se por imperícia e negligência, no dever de cuidado e vigilância que tinha em relação ao enfermo sob seus cuidados médicos, deixando de aplicar regras técnicas da profissão, o Dr. L. concorreu, igualmente, para o resultado típico (morte do paciente) claramente previsível nas circunstâncias.

Apenas às primeiras horas do dia seguinte (12 de junho), atendendo conselho do neurologista consultado par telefone (que se impressionou quando soube que a criança havia tido oito convulsões), o Dr. L. removeu L. para a UTI do Hospital Regional da Asa Sul, L~2. Tardiamente, porém, pois a vitima já deu entrada naquele hospital neurologicamente sem vida, vindo a falecer poucos dias depois (em I5 de junho).

A denúncia foi recebida neste Juízo em 18.11.91, pela Juíza então no exercício da Vara, acompanhada a peça inicial de substancial volume de documentos já reunidos no inquérito e de uma bem elaborada cota ministerial contendo longa lista de novas diligências, todas elas deferidas, dada a especial natureza da causa.

Os interrogatórios tiveram lugar no dia 10 de dezembro de 1991 e se encontram às fls. 134/139. Cada um dos acusados forneceu, na ocasião, minuciosamente, sua própria versão dos fatos.

As alegações preliminares encontram-se às fls.. 140/147, sendo que a defesa do primeiro réu chega a adentrar o mérito da causa, para centrar-se na tese da 'morte natural', provocada pela Síndrome de Reye (que classifica de 'mal incurável' e 'quadro patológico irreversível'), ao tempo em que insiste em destacar as conclusões do laudo pericial oficial, que afasta integralmente a possibilidade de intoxicação a que alude o laudo toxicológico do Dr. Brasil (laboratório particular, que admitira a intoxicação pelo medicamento Plasil em doses elevadas). Juntou, ainda, a defesa do Dr. C. cópia de sua exposição de procedimentos, dirigida ao Conselho Regional de Medicina do DF, em 18.6.1991, onde procura resguardar a sua imagem profissional diante da celeuma e grande repercussão na imprensa que o caso despertara (fls. 148/151).

As audiências de instrução e julgamento (que ocuparam sete datas diferentes) tiveram lugar nos dias 28.2.1992 (fls. 226/232), quando foram ouvidas duas testemunhas (M. e E., respectivamente, mãe e pai da vitima); no dia 3.4.1992 (fls. 237/242), ouvidas mais duas testemunhas (E. e A., uma auxiliar de enfermagem da clínica "...A..." e um amigo da família da vitima que a tudo acompanhou); no dia 6.4.1992 (fl. 243), que resultou adiada; no dia 28.5.1992 (fls. 253/256), quando foram ouvidas mais três testemunhas (o Dr. P. C. G., plantonista da UTI do hospital da L-2, e M. E. S. e N. L., atendente e auxiliar de enfermagem da Clinica "...B..."); no dia 14.10.1992 (fl. 304), resultando adiada pelo não comparecimento das testemunhas; no dia 29.10.1992 (fls. 316/321), ouvidos cinco dos médicos e peritos arrolados pela defesa, Drs. S., B., E., K. e J. G.; e no dia 13.ll.1992 (fls. 333/339), quando foram ouvidas as restantes testemunhas da defesa, em número de três (Drs. O. B. e J. B., e ainda o funcionário E. O.) e uma testemunha do Juízo (A. L. R., amigo da família da vitima, que acompanhou o case a partir da Clinica “...B...”), encerrando-se ali a instrução.

Nos autos, ainda, de relevo: as declarações na fase inquisitorial, os laudos de exame toxicológico (fl. 19), de exame cadavérico (fls. 29 e 66 e Complementação às 92/97), atestado de óbito (fl. 28), prontuários médicos da vitima na Clinica “...B...” (fls. 21/24 e 131 a 133), na Clinica “...A...” (fls. 24 e 128/129), laudo de exame histopatológico - IML (fls. 158/159), registro clinico do paciente no hospital da L-2 Sul (fls. 166/194), relação de pacientes internados na Clínica “...A..” (fl. 287), laudo dos peritos do Juízo, Dr. B. (fls. 322/324), Dr. P. H. (fls. 342/349) e Dr. L. M. (fls. 353/354).

As alegações finais do MP encontram-se (As. 355/399), em trabalho altamente elogiável pela sua profundidade, seriedade e meticulosidade, reveladoras do mais alto grau de compromisso com o cumprimento do dever do Promotor de Justiça. Conclui a alentada, erudita e bem elaborada peça pedindo a condenação, nos termos da denúncia.

As alegações da defesa do primeiro acusado (Dr. C.) estão às fls. 404/435), em peça também alentada, bem elaborada e competente, que honra o trabalho da Justiça Criminal e revela o profissional dedicado e cuidadoso que a subscreve. As alegações da defesa dos segundo e terceiro réus (Drs. P. e L.), mais resumidas, porém merecedoras da mesma atenção e respeito, inclusive pela sua correção e honestidade processual, encontram-se às fls. 401/403). Todas elas, como seria de esperar, pedindo a absolvição dos seus constituintes.

Relatados, decido.

Trata-se de processo complexo, merecedor do mais acurado exame, sob a mais serena reflexão, para seu deslinde. Inevitavelmente longo em seu curso, de modo a assegurar-se a mais ampla defesa possível, e, mais ainda, a busca da verdade real, transcorreu o feito, apesar disso e da delicadeza das questões que envolvem a culpa profissional, no mais incensurável nível de correção, quanta ao comportamento processual das partes, o que merece registro.

Ao seu final, nenhuma dúvida paira sabre a materialidade ou a autoria dos fatos, vistas estes em seus termos gerais.

Toda a questão se resume à caracterização, ou não, diante desses fatos, da culpa strictu sensu, ou da culpabilidade por fato culposo.

A questão central a ser analisada e respondida consiste, portanto, em saber «se houve, ou não, imperícia e negligência, par parte dos réus, que assim teriam concorrido para o resultado morte do paciente L.».

Tal questão central pode ser desdobrada em outras questões parciais, tais como:
1. O paciente estava sob os cuidados e responsabilidade profissional dos acusados?
2. O quadro do paciente autorizava limitarem-se os acusados aos procedimentos que adotaram? Ou seria do seu dever adotar outras providências, nas circunstâncias?
3. Era inteiramente impossível a eles perceber, em tempo hábil, a inadequação do tratamento até então adotado?
4. Agiram os acusados com a rapidez que se impunha, no caso?
5. Era inteiramente inalcançável para os acusados o diagnóstico do mal que matou L.? '
6. Era totalmente imperceptível que algum mal mais grave que os corriqueiros se evidenciava no quadro clinico da criança e, portanto, que conviria levá-la, ainda a tempo (o que vale dizer, 'com vida'), a local ou centro em melhores condições de diagnóstico?
7. Inexistiam, na área do DF, outros centres, estabelecimentos ou unidades, aos quais fosse possível recorrer, para enfrentar situação mais grave, incontornável naquelas clinicas?
8. Era totalmente imprevisível o resultado fatal que veio a ocorrer?
9. Em qualquer fase da evolução do mal, seria ele, de fato, irreversível?
10. Os pais e responsáveis pela criança foram devidamente informados e advertidos, durante todo o tempo, do verdadeiro estado e evolução do mal que afetava o seu filho?

Confira-se, agora, o que revela, a esse respeito, a prova constante dos autos, em sua essência:

Em primeiro lugar, é mais que evidente não caber qualquer dúvida quanta a ter sido o menor L. entregue, par seus pais, aos cuidados e responsabilidade profissional do acusado C., fato este que o coloca, desde logo, na posição de 'garante', prevista no § 2º do art. 13 da nossa Lei Material Penal. (E, portanto, a partir dai, qualquer omissão de sua parte, quando podia e devia agir, torna-se penalmente relevante).

A prova também não deixa margem a dúvidas quanto à posterior extensão dessa responsabilidade profissional aos médicos da segunda clinica envolvida - os Drs. P. e L. - a partir do momento em que o paciente foi transferido aos seus cuidados. Incontestável, do mesmo modo, que a responsabilidade do primeiro réu não cessou ai, nesse momento, seja porque era seu o cliente L.; seja porque a transferência se deu por motivo de sua clinica “.A..” simplesmente fechar suas portas à noite (embora recebendo internações durante o dia..), seja porque foi ele quem indicou a Clinica “B” aos pais de L., seja, finalmente, porque ele próprio assumiu a continuidade de suas responsabilidades, na medida em que alega que tratou de manter-se informado da evolução do estado do seu paciente, telefonando, inclusive, para a Clinica “...B...”, até determinada hora da noite, o que revela, ainda, de resto, a sua preocupação com aquele estado.

Em segundo lugar, por mais compreensíveis que sejam os esforços da defesa do réu C. no sentido de trabalhar com o endosso obtido de outros profissionais médicos para os procedimentos par ele adotados – tomando como descrição dos mesmos um texto da lavra do próprio Dr. C. e escrito para justificar-se perante o Conselho Regional de Medicina, e preservar sua imagem, diante da celeuma que se levantava sabre o caso -, tal 'endosso' não tem, evidentemente, o sentido que se lhe quer emprestar.

Primeiro, porque os profissionais ouvidos limitaram-se a concordar com os procedimentos ali descritos, partindo de um pressuposto não necessariamente verdadeiro, isto é, de que os fatos eram exatamente aqueles, e dai inferindo a adequação dos procedimentos (sem que estivessem, ao mesmo tempo, atestando que os fatos se passaram exatamente daquela forma, sem qualquer diferença ou omissão, nem, muito menos, que os procedimentos adotados foram efetivamente aqueles descritos no papel...; afinal, tratava-se de um mero papel, da lavra do próprio acusado, elaborado com o exato objetivo de defender sua imagem perante o CRM ...).

Segundo, porque não se questiona nem discute, neste feito, que as medidas iniciais adotadas pelo Dr. C. em relação ao paciente L. estivessem, desde o inicio, erradas. Pelo contrário, tudo está a indicar que foram elas (enquanto providências de rotina iniciais) as medidas normalmente indicadas para os casos simples e corriqueiros, de gastroenterites, infecções gastrointestinais e similares, admitindo-se serem estas as características da história e da sintomatologia inicialmente descrita e observada (vômitos, diarréia fétida, desidratação, etc.). Importante ressaltar, neste ponto, que tal ênfase da defesa talvez estivesse influenciada, à época, pelas suspeitas, paralelas, de que houvesse o óbito ocorrido par superdosagem do medicamento Plasil, o que, afinal, não veio a ser comprovado nos autos, de nenhum modo, e tem-se, por isso, neste momento, coma hipótese descartada.

Terceiro, porque a questão se situa em momento posterior, a começar pelas contradições entre o que afirmou C. em seu relato espontâneo (final de fl. 149 e inicio de 150), com respeito ao que realmente ocorreu quando L. se preparava para deixar a clinica: usou ele expressões amenas, como 'passando mal', 'sinais de contratura muscular', e disse que as atribuiu a uma «liberação do sistema extrapiramidal, possivelmente causada pelo Plasil»; em seguida às medidas que diz haver adotado, afiança ele que a criança apresentava 'bom quadro clinico', e que estava disposto a libera-la, mas, «diante da apreensão dos pais e da preocupação do signatário, recomendou que fosse levado para a Clinica “...B...”»; e que, mais tarde da noite, «voltou a ligar e recebeu informação da enfermeira de plantão de que estava tudo tranqüilo, em face do que foi repousar despreocupado...». (É de indagar-se: estava, antes, preocupado ou não? O quadro do paciente sugeria cuidados ou não?).

E maiores contradições aparecem logo em seu próprio interrogatório, prestado em Juízo cerca de 6 (seis) meses depois (As. 136/137). Ali admitiu que L. sofreu realmente uma 'crise convulsiva' ainda em sua clinica (fl. 136v., in fine)... que deixou outros clientes para atende-lo na sala de emergências... «que L. teve dificuldade de respirar... e que ficou com cianose, isto é, rosto pálido e meio arroxeado»... e que foi ele quem «disse à mãe de L. que não era bom o menor retornar para casa, pois o interrogando iria ficar preocupado... e que o mesmo não estava cem por cento hidratado...»

As contradições com os relatos da mãe de L., do pai de L., das testemunhas A. R. e da própria auxiliar de enfermagem da Clinica “...ª..” (E. M.) são ainda maiores, eis que estes afirmam: a) que foi após muita insistência da mãe da vitima que o Dr. C. concordou em encaminha-la para a outra clinica; e b) que «quando o Dr. C. disse aos pais da criança que podiam leva-la para casa, pois a mesma já estava bem, L., já tinha dado a primeira crise convulsiva' (Palavras da auxiliar de enfermagem da clínica “...ª..”, à fl. 239, in fine).

Porém, há mais nos autos. Vê-se que L. deixou a Clinica “...A...” sem recobrar os sentidos; no trajeto, em veiculo dos próprios pais, sem maiores recursos, sofreu crises e dificuldades respiratórias diversas; chegou à Clinica “...B...” semiconsciente' e ali sofreu diversas crises convulsivas, sem que o Dr. P. lograsse controla-las, a ponto de convocar o Dr. L. (proprietário e pediatra, o que não era o caso de P.) e que este, também, não o conseguindo, acabou por conseguir falar ao telefone, horas depois, com um neurologista, seu conhecido, que, ao seu relato, assustou-se de tal modo com o quadro, a ponto de recomendar a imediata transferência de L. para um hospital dotado de UTI, em quaisquer que fossem as condições de transporte.

Ora, de tudo resulta claro que o suposto 'endosso' dos colegas aos procedimentos do Dr. C. baseou-se em relato impreciso e incompleto dos fatos, para dizer o mínimo, o que, talvez, seja até compreensível, eis que tratava-se de um texto (invariavelmente apresentado pela defesa, nas audiências) por ele mesmo elaborado e declaradamente escrito para «resguardar sua imagem profissional», perante o CRM (fl. 151).

Ademais disso, pode-se notar, nas afirmações de alguns dos médicos confrontados com o texto, o cuidado de condicionar sua concordância com os procedimentos seguidos, acrescentando observações coma: «se a crise convulsiva foi única e debelada...» (Dr. P. C. G., fl. 254); «que inicialmente qualquer pediatra trataria coma um quadro de desidratação... Agora, com a evolução da doença, se surgirem novas sintomas devemos investigar outras causas e suspeitas... e, prosseguindo, faríamos exames complementares, como hemogramas, etc., etc. E se a criança, com as condutas adequadas, continua piorando, num quadro de convulsões repetitivas, agravando-se o estado geral, queda do estado de consciência, deveríamos pensar na possibilidade da Síndrome de Reye...» (As. 317/318, perita Dra. E. M.); «que se o caso fosse de uma convulsão pura e simples... caberia dar alta à criança... isto se a condição da criança era boa naquele momento...» (Dr. B., perito I fl. 318 v.); «que, em tese, não daria alta a uma criança que tivesse passado o dia inteiro internada e tivesse uma crise convulsiva...» (Dra. K., pediatra, I ft. 319 v.); «que, após debelada a primeira convulsão, teria removido o paciente para um outro hospital...», isto independentemente de ter-se que suspeitar de Síndrome de Reye; e «que no quadro do caso concreto dos autos, acharia prudente a observação em ambiente hospitalar...» (Dr. J. G. V., neurologista, ks As. 319/320).

É de ressaltar que, à exceção do primeiro (Dr. P. C.), todos as demais profissionais acima referidos foram arrolados, coma testemunhas, pela defesa.

Passando, agora, à conduta dos dois outros médicos acusados - Drs. P. e L. -, as evidências do dever de agir de forma diferente, para evitar o resultado, exsurgem ainda mais claramente.
Basta ver que, na Clinica “B”, a vitima já chegara «semiconsciente, apresentando apatia e palidez intensa», conforme atesta o próprio prontuário médico, (fl. 22), acrescentando-se, no mesmo prontuário (fl. 21), que a «criança teve apnéia e crises convulsivas e, após, passou a ficar inconsciente, tendo crises convulsivas freqüentes...»; e logo adiante: «Crise convulsiva (ilegível) internada...». E, depois: «1 hora – Criança persistiu quadro de crises convulsivas incessantes... Foi transferida para UTI do hospital L-2 Sul.» Ass. Dr. O. L.

Em seu interrogatório, o Dr. P. revela que logo percebeu «que o quadro de L. era mais grave», aplicou-lhe oxigênio... e ligou para o Dr. L.; que ali não havia UTI nem médico neurologista e a especialidade dele, P., é clinica geral...; que diante da ausência de exames laboratoriais era impossível diagnosticar o quadro clinico de L..., que as crises convulsivas persistiam..., que as pais de L. queriam leva-lo logo e estavam desesperados...mas «que o Dr. L. esclareceu-lhes que o menor estava mais seguro ali», porquanto tinha as aparelhos para cuidar de uma possível parada cardíaca, etc., que L. chegara à clinica às 20 horas, ali permanecendo até às 24 horas (na verdade, até 1 hora, conforme atesta com precisão o prontuário oficial assinado pelo proprietário da clinica) (interrogatório, fls. I Ml135).

O Dr. L., por sua vez, em interrogatório, confirmou que:

«L. chegou em estado semi-inconsciente; ...que o pai de L. lhe disse que o menor havia sofrido uma parada cardíaca na Clinica “...A...”; após a chegada na Clinica “...B...”, o menor teve cerca de dez a doze crises convulsivas...; que ficou sob seus cuidados imediatos por cerca de três horas...; que o medicou com Gardenal, oxigênio, soro e cuidados de reanimação... pois chegou a ter parada respiratória...; que chegou à clinica por volta das 22 horas...; que o estado de L. era extremamente grave..., com suspeita de meningite e rigidez de nuca...; que tinha sinais de edema cerebral...; que somente foi removido para o hospital L-2 Sul par volta das 24h40min (ou seja, 0h40min); que as pais insistiam na remoção imediata, mas a mesma não foi feita porque (em seu entendimento) ele morreria no percurso; que não foi submetido ali a nenhum exame laboratorial; que quando finalmente conseguiu contatar com o Dr. G., neurologista, o mesmo lhe disse que tinha que remover o paciente imediatamente, mesmo que fosse no intervalo das convulsões.»

Os depoimentos das testemunhas, além de confirmar tais fatos acrescentam ainda que:

«Sob as cuidados do Dr. P. L. teve duas ou três convulsões...; que L. dizia ao pai da vítima que sua clinica, embora não tendo UTI, tinha tudo o que L. necessitava...; que L. lhe assegurava que L. não iria morrer, pois havia-lhe dada Gardenal e não haveria mais convulsões.» (M. A., mãe de L., às As. 226/229.)

«Que, ao verem L. com a respiração fechada, os médicos enfiaram um aparelho na sua garganta, e que chegou a sangrar na mangueira do aparelho; que, no inicio das convulsões, indagava ao Dr. P. e este lhe respondia que L. estava ótimo... (E. L., pai de L., às As. 229/231.)

Tais fatos são corroborados, inclusive com detalhes, pelos depoimentos de A. R., (fls. 239/242) e A. R., (As. 337/338), que acompanharam toda a evolução na Clinica “...B...”, e reafirmam as garantias reiteradas, dadas pelo Dr. L. de que sua clinica tinha plenas condições para o case, e inclusive para caso de crise mais séria; mas que, depois da meia-noite, disse que ia consultar um neuro, porque as crises poderiam ter causado alguma lesão no cérebro de L. (I) e talvez fosse necessário leva-lo para uma UTI; e, logo após faze-lo, mudou prontamente de idéia e autorizou a transferência, mesma enfrentando crises sucessivas no trajeto (1).

Parece assim inteiramente insustentável pretender-se que o quadro do paciente autorizava os médicos responsáveis a limitarem-se aos procedimentos que adotaram, independentemente de serem aqueles procedimentos os normais e rotineiros até, de inicio, para os quadros corriqueiros já referidos. Torna-se francamente evidente, portanto, que lhes cabia, sim, o dever de adotar outras providências, pois a evolução do quadro, notória e visivelmente (até para leigos), o estava a exigir deles, coma médicos.

A toda evidência, era perfeitamente possível perceber, em tempo, a inadequação e ineficácia dos cuidados médicos até ali empregados. Basta para isso que se observe o número de horas consumidas, a seqüência de convulsões, a sua não cessação com os medicamentos e medidas administradas até então e o evoluir, enfim, do mal que afetava L..

Não agiram, pois, os acusados, a toda evidência, com a presteza e rapidez que as condições exigiam.

Seguramente não se pode afirmar que existissem, ao alcance dos réus, de pronto, condições que lhes permitissem formular o diagnóstico, especifico e preciso desse 'mal grave' que afetava L. como sendo a 'Síndrome de Reye'.

A tanto não se deve chegar, muito embora não se trate de enfermidade tão nova (tem pelo menos trinta anos de descoberta) nem desconhecida. Afinal, todos os médicos ouvidos em Juízo a ela se referiram. A própria defesa do primeiro réu fez juntar a suas alegações finais um texto intitulado Emergências Neurológicas em Pediatria, em português, aparentemente integrante de um livro ou manual que nada tem de 'raro' ou de difícil acesso na literatura medica, sequer exigindo o domínio de um único idioma estrangeiro (fls. 425/435).

Mas não se põe aqui a questão de que tivessem os três acusados o dever de haver diagnosticado, naquele memento e lugar, exatamente a 'Síndrome de Reye' no paciente L. Não. O que não se pode aceitar é não tivessem o dever de perceber que estava presente um mal grave, fosse qual fosse, mas mal seguramente distinto e maior que os corriqueiros casos de distúrbios gastrointestinais, diarréias e vômitos, do comuns na infância, e em cujo ataque centralizaram, de inicio, todo o seu arsenal usual de medicação. E, menos ainda, que, após constatar a ausência de resposta efetiva, limitassem-se a utilizar os precários recursos da segunda clinica, tentando, durante mais de seis horas, debelar ou controlar crises sucessivas de convulsões, em número e freqüência crescentes, numa clinica pediátrica, onde sequer havia um neurologista disponível (só par volta da meia-noite conseguiu-se contatar um, e por telefone), nem quaisquer elementos apropriados para um diagnóstico mais fino. E, durante todo esse tempo (mais de seis horas) opondo toda sorte de resistências e obstáculos à intuitiva e lúcida percepção dos pais da criança e seus amigos, que insistentemente apelavam e imploravam pela transferência para um hospital mais equipado, especialmente com UTI. Ao contrário, mantiveram-nos iludidos e enganados, sob promessas e garantias inverídicas de que, naquela clinica, existiam todas as condições necessárias para fazer frente ao caso.

O dever (mínimo) de tais profissionais da medicina, naquela situação, seria, a toda evidência, o de providenciar, muito mais cedo do que o fizeram, a presença de um neurologista (que, a rigor, a própria clinica, se faz plantões com crianças internadas, deveria possuir). E, ao lado disso, diligenciar para que fossem feitos exames laboratoriais e outros complementares, indispensáveis a uma prospecção fina do mal que atingia aquele paciente. Se não possuíam essas facilidades mínimas ali, era do seu dever tratar de encaminha-lo logo, em tempo hábil, para onde existissem, ao menos: a) condições de suporte para suas precárias condições de vida naquele momento, isto é, condições para mante-lo vivo, até que pudessem ser feitos outros exames e constatações; b) condições para uma prospecção diagnóstica fina e rápida (capaz de levar, até, se o caso, ai sim, ao diagnóstico da Síndrome de Reye).

Mas não, nem uma coisa nem outra. Noutras palavras, não tomaram as medidas que poderiam e deveriam tomar. Falharam, assim, no mínimo, por lentidão e demora em tais providências, pois, quando finalmente vieram a transferir a criança para o hospital da L-2 Sul, a mesma ali já chegou clinicamente morta (morte encefálica), conforme o atesta, sem controvérsia alguma, toda a prova nos autos.

Pretender que não haja responsáveis, penalmente, para tal morte, ao argumento de ter sido ela classificada de 'morte natural' (pela Síndrome de Reye), é tese que não faz jus ao bom senso e, menos ainda, aos conhecimentos jurídico-penais de quem a levante, à luz da simples leitura do teor do art. 13, § 2º do nosso Código Penal, conforme se demonstra mais adiante, ao tratar da figura penal do 'crime comissivo por omissão' ou 'omissivo impróprio'.

Pretender que o direito deixasse impune quem, havendo recebido uma criança em sua clinica, e assumindo-lhe as responsabilidades dai decorrentes, diante da evolução do seu quadro, não a cure, não diagnostique seu mal, e nem providencie, em tempo hábil, a sua transferência para onde uma dessas duas coisas pudesse ser feita, em que pesem os veementes e dramáticos apelos dos pais... corresponde a admitir que o direito pode brigar contra o bom senso e a lógica.

Vale conferir, antes, porém, se a ação efetiva e tempestiva que aqui se preconiza para os acusados teria sido útil para salvar a vida de L. (embora essa condição em nada alterasse o seu dever de agir, imposto pelo referido § 2º do art. 13). E é interessante ressaltar que, ainda ai, a resposta é afirmativa. De fato, tomando par base as próprias provas trazidas nos autos pela defesa, sobretudo o excelente trabalho dos especialistas P. e M. acostado às alegações finais (e somente transcritos na defesa de C. até o seu primeiro parágrafo, talvez buscando impressionar pelo alto índice de letalidade aparente à primeira vista... para quem não prossiga na leitura das páginas seguintes do texto), vê-se que:

«No estudo original, a taxa de mortalidade foi de 70%. A taxa total de mortalidade relatada pelo Centro de Controle de Doenças, de 1970 a 1975, foi de 44%o. Por outro lado, a taxa de mortalidade durante a epidemia foi de 22%... E mais: 'As estatísticas durante a epidemia de 1974, analisadas pelo estágio de coma no memento da internação, revelaram as seguintes percentagens: 0% no estágio 0; 22% para o estágio 1; 42% para o estágio 2; 50% no estágio 3; 69% no estágio 4 e 83% no estágio 5...'

Também se descobriu que a morbidade da Síndrome de Reye correlaciona-se com o estágio de coma atingido durante a doença...E mais: 'Nenhum paciente que não tenha passado do estágio 3 de coma desenvolveu defeito neurológico'... 'Mais recentemente, com o advento de maior conscientização dos médicos, do reconhecimento dos casos mais brandos, do encaminhamento mais precoce para centros pediátricos regionais e do desenvolvimento de protocolos de tratamento intensivo... alguns centros estão relacionando taxas globais de mortalidade de até 10%o, sendo 5%o para o estágio 3; 40 a 50% para o estágio 4 e 80% para o estágio 5.'»

É efetivamente impressionante a clareza com que se infere do texto anexado pela defesa que, em matéria da Síndrome de Reye, quase tudo depende do estágio em que se cuide de internar o paciente em local adequado.

Do mesmo modo que se percebe não serem corretas as argumentações baseadas numa taxa elevadíssima de mortalidade, que foi apenas a que se verificou, na época da descoberta da enfermidade, ou seja, no longínquo ano de 1963... (e trinta anos em medicina representam, por certo, em termos de evolução, quase uma eternidade).

Menos corretos, ainda, os rótulos de fatal e irreversível, para esse mal, assim postas de forma simplista e incondicionada.

Mas o estudo (fls. 426/435) diz mais. Informa que os achados clínicos, neurológicos e laboratoriais da síndrome já permitem a identificação de cinco estágios, e que utilizando-se este sistema de estadiamento «podem-se tomar decisões relativas ao prognóstico e à necessidade de intervenção terapêutica mais vigorosa» (fl. 428). E, ao descrever as características observáveis em cada um desses estágios, até o leigo pode identificar ali a evolução de um quadro como o do paciente L. e o modo como ele claramente evoluiu.

Mais adiante, (fl. 429), o estudo juntado pelo acusado C. aos autos ensina o que deve ser evitado e qual deve ser a conduta para o tratamento da doença. Dentre as primeiras coisas a evitar, ironicamente se lê: «Evitar sedação e antieméticos...» E entre as primeiras condutas recomendadas estão: «Os exames laboratoriais...» Noutras palavras: exatamente o oposto do que foi feito no caso de L.

Na parte referente aos 'fatores contribuintes' (medicamentos que contribuem para o desenvolvimento da síndrome) está registrado o seguinte: «Muita atenção tem sido dada ao uso de antieméticos por crianças com pródromos gripe-simile e vômitos e diarréia...» (Embora sem que haja provas definitivas, ainda) (fl. 432.)

O estudo de P. e M. não está datado. Todavia, pelas estatísticas e pelas fontes citadas, não é difícil concluir que o mesmo deve datar do inicio dos anos de 1980. Seria de indagar-se se tais informações, inseridas como estão num trabalho maior intitulado significativamente de Emergências Neurológicas em Pediatria, poderiam deixar de ser do conhecimento e plena utilização de uma clinica pediátrica. E uma clínica pediátrica situada na Capital da República, ou no Distrito Federal, cerca de uma década após sua publicação...

E se, em caso contrário, o fato não constitui um indicador de imperícia ou de negligência, sobretudo quando associado aos demais fatos constantes destes autos.

Tenho comprovado, assim, que a enfermidade que matou L. não era impossível de ser diagnosticada (fosse ali, fosse em outros estabelecimentos, existentes no DF e aos quais tinham eles obrigação de recorrer em tempo), caso aquelas clinicas (ou seus médicos) estivessem, como deveriam estar, equipadas, no mínimo, de boa literatura médica, ao menos no nível dos manuais de emergências pediátricas. Tudo isto se já não fosse bastante o bom senso e a percepção do quadro, que deve ser inerente aos profissionais, acostumados a lidar em seu dia-a-dia com tais problemas, e que, de resto, não escapou à própria percepção de pessoas leigas, conforme se viu.

Provado, igualmente, restou que a patologia não era 'irreversível', nem 'reversível' só por milagre', nem obrigatoriamente 'fatal', nem que «só poderia ser diagnosticada a síndrome após o óbito», coma pretendiam fazer crer as defesas. Evidente, do mesmo modo, que nada significa, juridicamente, neste contexto (do crime comissivo por omissão), o rótulo de 'morte natural'.

Confira-se, agora, o que diz o direito penal atual, na letra da sua lei, na voz da sua jurisprudência, e nas lições dos nossos melhores doutrinadores.

Com inteira procedência, já antecipava a Promotoria, (fl. 104), o direito aplicável à espécie, ao dizer em oportuna cota:

«Mesmo que se admita incontestável tal veredito (morte natural, por Síndrome de Reye), as denunciados, com suas atitudes, concorreram, sucessivamente, para o resultado naturalístico, o qual, embora previsível, não procuraram evitar, ainda que lhes fosse exigível e possível nas circunstâncias. Tudo isso resulta claríssimo dos autos: deixaram eles de constatar que mal gravíssimo - genericamente, conforme evidenciavam as inúmeros sintomas – acometia a vítima e não tomaram as providências médicas que a situação reclamava. Trata-se, com efeito, de crime comissivo por omissão. Neste, como se sabe, não importa definir se o resultado (morte, no caso) teria acontecido mesmo quando existisse a conduta omitida, mas em indagar se o agente se esforçou seriamente para impedi-lo (Mirabete, pág. 109). Negativa a resposta, quando houver obrigação ou dever de evitar o resultado, haverá nexo de causalidade e incidência da norma penalmente tipificada...» (fls. 104/105.)

De fato, a isso pode-se acrescentar, ainda aproveitando as lições de Mirabete, a análise, aplicada ao caso concreto, dos seus conceitos de elementos da culpa:
1. a conduta - não pelo seu fim, mas pelo seu modo de atuar, isto é, o 'desvalor da agir', diferente do 'desvalor do resultado';
2. a inobservância do dever de cuidado objetivo - confrontando-se com a conduta que teria, no caso, um médico prudente, atento e competente;
3. o resultado lesivo involuntário - não há dúvida de que ai entra um 'componente de azar', pois a mesma conduta negligente ou imperita poderia até restar impune, se não ocorresse o 'resultado fatal';
4. a previsibilidade - que, nas condições dos acusados, como médicos que assumiram responsabilidades relativas à saúde e à vida do paciente, é mais que havia, inclusive como 'previsibilidade subjetiva', e não apenas como a 'previsibilidade objetiva', do homem comum. (Não se trata aqui de discutir se o resultado foi efetivamente 'previsto' pelos acusados, caso em que já adentraríamos o terreno da 'culpa consciente', vizinha do dolo eventual. Não há elementos de prova para tanto);
5. a tipicidade - em termos dos 'tipos abertos' dos crimes culposos, a conduta foi 'típica' porque se verifica que os agentes não atenderam ao dever de cuidado objetivo, como já se viu.

Nas palavras do mesmo penalista, a 'omissão' também é 'causa' de 'resultados', porque o nosso código adotou a teoria normativa, segundo a qual o omisso responde polo resultado, não porque o causou, mas porque não agiu para impedi-lo, realizando a conduta indicada a que estava obrigado (Mirabete, pág. 108, vol. I).

Já o eminente Ministro do STJ e penalista consagrado Francisco de Assis Toledo leciona, apoiado em Hungria, que «o nada, no mundo físico, é transformado em algo dotado de relevância jurídico-penal, diante de um resultado físico, e o omisso deve ser considerado como causador desse resultado» (págs. 1 71 II 73, princípios básicos).

O mesmo autor e Ministro, em outra passagem da mesma obra, discorrendo sabre o 'nexo de causalidade', traz exemplo esclarecedor:

«De um ponto de vista naturalístico ou cientifico, não se poderá, obviamente, reputar 'causa' da morte de um doente a 'omissão' da enfermeira em ministrar-lhe o remédio na hora certa. Nessa hipótese, a necrópsia apontará como causa mortis algum fenômeno relacionado com a própria doença. Não obstante, não violenta o pensamento jurídico nem a lei penal dizer-se que a omissão da enfermeira pode ser igualmente reputada uma causa do resultado morte... A isso conduz à denominada Teoria da Equivalência, ou da conditio, acolhida polo nosso legislador penal, como consta da exposição de motive... » (pág.111)

Discorrendo agora sabre o problema da causalidade nos crimes de omissão, ensina Assis Toledo que:

«Os crimes omissivos impróprios, ou comissivos por omissão vinham ensejando disputas doutrinárias que perderam relevância com a reforma penal, pois o legislador estabeleceu um nexo de causalidade normativa entre a omissão e o resultado, no art. 13 e seus parágrafos do CP, especificando as hipóteses em que esse nexo deva ser reputado presente, a saber:
a) tenha o agente, par lei, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.»

A omissão, prossegue ele, terá o mesmo valor penalístico da ação quando o omisso se colocar, por força de um dever jurídico (art. 13, § 2º), na posição de garantidor da não ocorrência do resultado (págs. 116/117).

Tratando já agora da culpa stricto sensu e da culpabilidade por fato culposo, Toledo mostra que, apesar da colocação da tônica sobre o comportamento humano, não se deve considerar nos crimes culposos apenas o 'desvalor da ação', mas também o 'desvalor do resultado', o que levou Mirabete a referir-se a 'um componente de azar'. Toledo, entretanto, fulmina a questão, ao formula-la da seguinte maneira:

«Nem se diga que isso levaria a uma vergonhosa responsabilidade pelo resultado. Se nos crimes dolosos, o resultado deve ser alcançado pelo dolo, nos culposos deverá sê-lo pela previsibilidade do agente. E a não punição do fato, na ausência do evento danoso, diz respeito unicamente a um crime que não se aperfeiçoou. Isso não deveria, obviamente, ser motivo para perplexidade, por ocorrer também em certos crimes dolosos.»
«Diga-se, par fim, que o dever objetivo de cuidado consiste em preocupar-se o agente com as possíveis conseqüências perigosas de sua conduta - facilmente reveladas pela experiência da vida cotidiana, tê-las sempre presentes na consciência e orientar-se no sentido de evitar tais conseqüências. O conceito desse dever objetivo de cuidado pode coincidir com o comando de normas legais ou regulamentares, como ocorre, por exemplo, com as regulamentos de trânsito... ou com o dever de obediência a certas regras técnicas, de profissões ou atividades regulamentadas. Nesse caso, a inobservância das normas legais ou regulamentares, que especificam e proíbem determinadas regras ao agente, cria em desfavor deste uma presunção de ter agido culpavelmente, incumbindo-lhe o difícil ônus da prova em contrário... Onde não houver normas legais ou regulamentares especificas, o conteúdo do dever objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um principio metodológico, no dizer de Welzel, ou seja, por meio da comparação do fato concreto com o comportamento que teria adotado, no lugar do agente, agente, um homem comum, inteligente e prudente» (págs. 288/301).

E, na magnifica síntese de Damásio de Jesus. «Há dois critérios de aferição da previsibilidade: o objetivo e o subjetivo... pelo critério objetivo, a previsibilidade deve ser apreciada em face do homem prudente e de discernimento. Nos termos do critério subjetivo, deve ser aferida tendo em vista as condições pessoais do sujeito.. Coma se vê, a previsibilidade objetiva se projeta no campo do tipo penal; a subjetiva, na culpabilidade» (Direito Penal, vol. I, pags. 255/256).

Da análise exaustiva da prova dos autos, posta esta sob as faces do direito pátrio em vigor, enriquecido pelas luzes de seus melhores doutrinadores, tem-se claras a tipicidade das condutas dos acusados (crime culposo - nas modalidades de negligência e imperícia), a inobservância do dever de cuidado. O resultado ilícito e a sua previsibilidade - tanto objetiva quanta subjetiva -, o que vale dizer que o fato, além de típico e antijurídico, é culpável e reprovável, e censuráveis os seus autores, os acusados.

Não há excludentes nem causas de isenção. Os réus são imputáveis e culpáveis.

Apenas em um ponto, não reconheço razão ao MP: trata-se da pretendida aplicabilidade da qualificadora (aumento de pena) prevista no § 4º do art. 121. Isto porque entendo estar-se, no caso, diante de duas hipóteses: 1ª hipótese: a inobservância de regras técnicas da profissão dos médicos constituiu-se na própria essência de toda a questão que aqui está em julgamento, inevitavelmente imbricada nos conceitos de negligência ou de imperícia (tal como, de resto, se encontra posta na denúncia). E, ao concluir pela sua condenação se está levando em conta justamente esse fundamento, nele se encontrando apoiada a própria tipificação e culpabilidade do homicídio culposo, no caso (figura do art. 121, § 3º); e, nesta hipótese, aplicar-se o aumento do § 4º implicaria em bis in idem.

Ou – 2ª hipótese - seria preciso que se houvesse comprovado, com suficiente segurança, que os três acusados - médicos - tinham os conhecimentos necessários, todos, e deixaram de utiliza-los para salvar a criança. E isto (esta prova segura) certamente não se fez nos autos. Além do que, como se viu, a própria denúncia imputou aos réus, enfática, expressa e repetidamente, isto sim, a culpa sob as formas de negligência e imperícia (pela omissão), não se vendo ali mais que uma brevíssima referência, en passant, à inobservância de 'regra técnica da profissão', posta, porém, à toda evidência, em caráter explicativo da expressão anterior, como integrante daquele mesmo conceito. Confira-se o trecho: «... omitindo-se por imperícia e negligência, no dever de cuidado e vigilância que tinha em relação ao enfermo sob seu tratamento médico, deixando de aplicar regra técnica de sua profissão..., o Dr. L. ... etc.» (fl. 7.)

Ora, não há como, sem grave risco de cometer injustiça, considerar a qualificadora, no caso dos autos.

Não é outra, aliás, a orientação da jurisprudência, como a que se colhe em Delmanto, pág. 206, verbis: «Se a inobservância da regra técnica foi o próprio núcleo da culpa que se reconheceu para condenar, ela não pode servir, também, para aumentar a pena, pois redundaria em dupla punição» (Tacrim-SP0, Julgados 81/460). Do mesmo modo, o direito pretoriano compilado in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, vários autores, onde podem ser conferidos as seguintes arestos, dentre outros: «Não se justifica o aumento previsto na espécie, urna vez que a inobservância de regra técnica da profissão se erigiu, precisamente, no núcleo da culpa... não podendo assumir a função bivalente de, em primeiro estágio, caracterizar o crime e, em estágio sucessivo, acarretar o aumento da pena» (Tacrim-SP, Rel. Jarbas Mazzoni; Jutacrim 69/291); ou «No homicídio culposo, a majoração da pena em virtude da inobservância de regra técnica é incabível quando esta constituir precisamente o núcleo da culpa com que se houve o agente» (TACrimSP, Rel. Renato Talli, JUTACRIM 79/253).

E, na doutrina, ainda é o mestre Júlio Mirabete quem lembra, citando Euclides Custódio da Silveira, que «no caso da agravante, o agente conhece a regra que não observou, ao contrário do que acontece na imperícia, que pressupõe a inabilidade ou insuficiência profissional, genérica ou especifica» (vol. 12, pág. 62).

No caso dos autos, tendo em vista que foram imputadas aos réus tanto a imperícia quanta a negligência, não parece sobrar lugar para a qualificadora do § 4º, assim de modo automático e natural, sem que se satisfizesse a indispensável (e difícil) prova acima referida, e que precisaria, ademais, estabelecer segura diferenciação, com todas as suas nuances, daquilo que constituiu negligência, e do que, ao contrário, constituiu a alegada «inobservância de regras técnicas da profissão, que as acusados conheciam».

Isto posta, julgo procedente, em parte, a denúncia e condeno as acusados C. A. N., P. M. P. e O. L., qualificados nos autos, como incursos nas penas do art. 121, § 3º, do Código Penal Brasileiro.

Passo a fixar-lhes as penas:

O crime de homicídio culposo é punido, em abstrato, com detenção de um a três anos.

Na análise das circunstâncias judiciais (art. 59) - a que procedo em conjunto, eis que idênticas as situações dos três acusados -, vejo que as réus são todos primários e sem quaisquer antecedentes criminais registrados. Nada há nos autos que desabone sua conduta social anterior, em termos gerais, excetuado o presente ato. Não existem indicações de que se trate de personalidades voltadas para o crime. Afinal, tem-se, apesar da gravidade do resultado, um crime culposo. Par essa mesma razão, as conseqüências do crime, da mais alta seriedade (morte), não podem influir (na mesma proporção da sua gravidade) na dosagem da pena.

A culpabilidade, com suas nuances, ao final pode ser tida como equiparável entre os três réus, não havendo propriamente 'diferentes graus ou intensidade' a distinguir entre eles. Todos três acabaram concorrendo, cada qual a seu modo, igualitariamente, para o resultado fatal, com suas respectivas e especificas omissões, cada qual em seu momento, forma o dever (omitido) de agir. Todos eles tiveram, assim, condutas omissivas reprováveis e censuráveis, em alto grau (ainda que nos limites próprios da culpa (culpa stricto sensu). Ressalte-se, ainda, que não se dispõe, nos autos, de elementos suficientes para aprofundar a avaliação do caráter 'consciente' ou 'inconsciente' dessa culpa, conforme vista na fundamentação.

Tudo sopesado, fixo a pena-base, para cada um dos réus, um pouco acima do mínimo legal, em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de detenção. Não há agravantes aplicáveis, por se tratar de crime culposo; e não incidem atenuantes legais, nem causas de aumento ou diminuição de pena, descartada que ficou, acima, a aplicação do § 4º do art. 121.

Torno, assim, definitiva a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de detenção, que faço, porém, substituir, do exercício da profissão médica, pelo mesmo prazo, eis que diretamente relacionado o crime com este exercício profissional, violados deveres inerentes ao mesmo e presentes os requisitos subjetivos e objetivos da substituição (arts. 44 e 56 do CP).

Além dessa, aplico-lhe, como determina o parágrafo único do art. 44, outra pena de prestação de serviços à comunidade, pelo mesmo prazo, e executável simultaneamente, devendo esta ser implementada em instituições filantrópicas comunitárias ou em hospitais públicos, evidentemente sem que os condenados ai pratiquem a medicina, mas, sim, atividades outras de caráter auxiliar ou paramédico, nas quais se possam aproveitar seus conhecimentos e aptidões. Caberá ao MM. Juiz das Execuções Penais especificar os locais e horários respectivos, dentro dos convênios existentes ou a serem celebrados, bem como incumbir-se de todas as comunicações necessárias, inclusive aos órgãos fiscalizadores do exercício profissional, tudo nos termos dos arts. 44, 47, II, 55 e 56 do Código Penal, e dos arts. 147 a 155 da Lei de Execução Penal (Lei n? 7.210/84).

Para a eventualidade da conversão prevista no art. 45 do CP, estabeleço o regime semi-aberto para o cumprimento das penas privativas de liberdade, pelo tempo que restar por cumprir, quando da conversão.
Custas de lei. Transitada esta em julgado, inscrevam-se os nomes dos réus no rol dos culpados e expeçam-se as cartas de sentença. Oportunamente, após a execução integral das penas, dê-se baixa e arquivem-se os autos.

PRI.

Jorge Hage
Juiz de Direito

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