domingo, 9 de setembro de 2007

Caso Patachó

EMENTA


“PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO DOLOSO. DESCLASSIFICAÇÃO. LESÕES CORPORAIS SEGUIDAS DE MORTE. PRETERDOLO.
Se a intenção dos agentes foi a de provocar um susto na vítima, ao acordar com o pano que cobria suas pernas em chamas e não o de causar a sua morte, diante fazerem-se presentes uma conduta dolosa - atear fogo -, e outra culposa - a morte -, derivada da violação do dever de cuidado, resta configurado o crime preterdoloso que impõe se desclassifique a imputação de homicídio doloso para lesões corporais seguidas de morte.”


Acórdão


Acordam os Desembargadores da Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, JOAZIL M. GARDÉS - Relator, GETÚLIO PINHEIRO e APARECIDA FERNANDES - Vogais, sob a presidência do Desembargador GETÚLIO PINHEIRO, em, POR UNANIMIDADE DE VOTOS, CONHECER DO RECURSO, REJEITAR A PRELIMINAR E LHE NEGAR PROVIMENTO. UNÂNIME, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 05 de março de 1998.



Des. Getúlio Pinheiro
Presidente



Des. Joazil M. Gardés
Relator




RELATÓRIO

Senhor PRESIDENTE, Senhores DESEMBARGADORES.

A representante do Ministério Público, perante o Tribunal do Júri da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília-DF, qualificando-os, denunciou MAX ROGÉRIO ALVES, ANTÔNIO NOVELY CARDOSO DE VILANOVA, TOMÁS OLIVEIRA DE ALMEIDA e ERON CHAVES OLIVEIRA, por infração ao que se dispõe no artigo 121, §2º, I, III e IV do Código Penal e artigo 1º da Lei nº 2.252/54 e artigo 1º, da Lei nº 8.072/90, alegando, em resumo, que no dia 20 de abril de 1997, por volta das 05:00 horas, na EQS 703/704, na Av. W3-Sul, nesta Capital, após divertirem-se durante toda a noite, procurando dar continuidade à diversão, juntamente com o menor GUTEMBERG NADER ALMEIDA JÚNIOR, jogaram substância inflamável em GALDINO JESUS DOS SANTOS, índio Pataxó, que dormia no banco da parada de ônibus, e atearam fogo, fazendo dele uma tocha humana, assumindo o risco de provocar o resultado morte, o qual veio a ocorrer, em razão das queimaduras em todo o corpo, fazendo-se presentes as qualificadoras motivo torpe (para se divertirem), meio cruel (queimadura) e recurso que tornou impossível a defesa do ofendido ( atacado enquanto dormia); e, que ao cometerem o crime com um menor de 18 anos de idade, facilitaram a sua corrupção.
No juízo de admissibilidade da acusação, a MM Juíza de Direito, Presidenta do Tribunal do Júri, com apoio no que se dispõe nos artigos 408, §4º e 410, do Código de Processo Penal, desclassificou a imputação de homicídio doloso, para o crime de lesão corporal seguida de morte (Código Penal, artigo 129, §3º), (fls.570/592).
Irresignado o Órgão do Ministério Público interpôs Recurso em Sentido Estrito, arrazoando, ao longo de 24 laudas, que

“...Adentrando o mérito, a MM Juíza transcreve alguns depoimentos e menciona outros, valorando-os de forma, data venia, indevida, razão por que decidiu que os acusados, embora jogando combustível e ateado fogo na vítima, não teriam assumido o risco de produzir o resultado morte. Faz longo arrazoado sobre a diferença entre dolo eventual e culpa consciente, transcrevendo doutrina e jurisprudência que julga aplicável ao caso. Não decidiu com o costumeiro acerto, ...”;

segue argumentando que houve equívoco da i. magistrada ao admitir a versão dos acusados, uma vez que agiram com dolo eventual, não comportando, por isso, a desclassificação, uma vez que, até mesmo demonstrou ter dúvidas diante da linha divisória entre o dolo eventual e o preterdolo, motivo que comportava utilizar o princípio pro societate, para pronunciá-los e não podia impedir ao Júri apreciar a causa que lhe está reservada na Carta Política; que aos jurados e não ao magistrado singular, cabe o julgamento, e, se for o caso, a desclassificação; que para chegar à desclassificação foi procedida profunda apreciação do mérito da causa, em contraposição à doutrina e à jurisprudência, ferindo de morte o princípio in dubio pro societate, fato que abala as vigas mestras da estrutura jurídica, atingindo a norma constitucional contida no artigo 5º, XXXVIII e transgredindo as regras expressadas nos artigos 408, 410 e 74, §1º do Código de Processo Penal; que aprofundar a discussão sobre o mérito não é a melhor técnica, não foi o momento processual o melhor, daí porque a decisão deve ser reformada, para pronunciar os réus nos termos da denúncia.
Da sentença de desclassificação, a Assistência da Acusação, promovida pela doutora HERILDA BALDUINO DE SOUZA, por termo (fl.600), interpôs Recurso em Sentido Estrito, o qual foi indeferido, diante da igual iniciativa do Órgão do Ministério Público, assegurando a ela arrazoar o recurso interposto pelo parquet.
Posteriormente, os doutores Assistentes da Acusação opuseram Embargos de Declaração, argüindo ser a sentença omissa quanto ao delito de corrupção de menores (fls.606/607), advindo, então a decisão de fls.609/611, que não conheceu dos embargos, diante da preclusão que se operou pela interposição do recurso em sentido estrito, que não cogitou de embargar a questão, uma vez que o recurso devolve o conhecimento amplo e total e, que a Assistência da Acusação não tem legitimidade autônoma para interpor o recurso, por haver o Ministério Público interposto o recurso cabível.
A Assistência da Acusação ofertou razões no Recurso interposto pelo Ministério Público, postulando pela pronúncia dos réus nos termos da Denúncia.
Em contra-razões, ERON CHAVES OLIVEIRA e TOMÁS OLIVEIRA DE ALMEIDA (fls.703/722), aduziram que a desclassificação da imputação, obedeceu aos mandamentos constitucionais objetivando garantir os direitos fundamentais e subjetivos dos recorridos de se submeterem a julgamento perante a Justiça Togada; que a desclassificação para o crime de lesões corporais seguidas de morte, não ofende a lei federal; que a decisão hostilizada faz-se acertada, lembrando que a linha divisória entre o dolo eventual e a culpa consciente não é a previsibilidade subjetiva e tampouco a previsão objetiva, mas o aceitar o resultado como decorrência da conduta do agente, observando-se, ainda, o nexo de causalidade entre ambos, pena de configurar o caso fortuito; que somente do ponto de vista da Acusação, os recorridos aceitaram o resultado de forma indiferente, estando o desespero da fuga a revelar a surpresa com o resultado e não a certeza da sua produção. ANTÔNIO NOVELY CARDOSO DE VILANOVA (fls.731/745), lembrando que na r. sentença, sem deixar se influenciar pela mídia, esclareceu a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente, para concluir que os recorridos ao praticarem a conduta descrita na denúncia não o fizeram assumindo o risco do resultado morte; analisando os fatos, assevera ter ocorrido ERRO NA EXECUÇÃO DA BRINCADEIRA que era apenas de assustar a vítima, tanto que desesperados, correndo, abandonaram o local; discorre sobre o que vem a ser o dolo eventual e conclui pela ausência do animus necandi, que confere robustez a sentença desclassificatória. MAX ROGÉRIO ALVES (fls.746/817), juntando documentos, refuta os argumentos postos no recurso, argüindo que, se a intenção fosse a de matar não teriam empregado meio de pouca potencialidade lesiva (fogo); que intentaram fazer uma brincadeira, sobrevindo do acaso a tragédia; que agiram de forma leviana e desastrada, nunca premeditada, o que restou demonstrado ainda no fragor dos acontecimentos, posto que não tinham a intenção de matar e que tudo ocorreu à conta de um erro de cálculo, de uma terrível fatalidade, tendo se espelhado no quadro exibido na TV, denominado “A ponte do rio que cai” (uma deturpação do título do filme A PONTE DO RIO KWAY, no qual retrata episódio da 2ª Guerra, filme épico, ganhador de sete oscars, em 1957), no qual o concorrente deve atravessar uma pinguela, debaixo de uma saraivada de bolas e indaga: “se o jovem viesse, em conseqüência da bolada ou da queda da ponte, a morrer, poder-se-ia falar em homicídio doloso, direto ou eventual? Foi mais ou menos o que aconteceu”, ao desejarem fazer uma brincadeira, responde; que existe nítida distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente; que foram ao posto de gasolina para abastecer o carro e não com o propósito predeterminado de atearem fogo em alguém e, na volta, foi que mudaram de desígnio, sem o pretenso animus necandi, estando a acusação oficial posta sobre uma versão parcial, arbitrária, fantasiosa e absurda, de quem se julga dona da verdade e passa a discorrer sobre o trabalho elaborado pelo Químico ROBERVAL LECH GUERREIRO, no qual dá ênfase a cinco aspectos que permitem acreditar na total ausência de dolo nas intenções dos “caboclinhos”; prossegue defendendo a revogação da prisão preventiva; profliga a pesquisa do “Fantástico” do dia 14.8.97, sobre a intenção dos requeridos de matar o índio; acicata a fala Presidencial de que não terá sossego enquanto não sejam punidos os responsáveis pelo massacre de Corumbiara e do assassinato do índio Pataxó, posta como bandeira política da reeleição.
No Juízo de retratação, restou mantida a decisão recorrida (fls.820/830).
Ao apresentar o parecer de fls.835/879, no qual a douta Procuradoria de Justiça opina pelo conhecimento e provimento do recurso, sua ilustre subscritora, doutora SANDRA MENDES GONZAGA NEIVA, fez juntar parecer elaborado pelo Professor DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS e cópia do Fax do Pronto Socorro para Queimaduras Ltda, de Goiânia (GO), (fls.880/903) e, por cota nos autos, alega estar a e. Primeira Turma Criminal preventa para julgar o recurso, porquanto, perante a Câmara Criminal, integrante do seu quadro, foi o relator do Mandado de Segurança nº 7254/97, que trata de matéria correlata, o que antecedeu aos habeas corpus nºs 7.651 e 7.772, julgados por esta Turma Criminal.
Às fls.907/912, a Defesa de MAX ROGÉRIO ALVES, fez juntar carta do Químico ROBERVAL LECH GUERREIRO, enfocando ser errônea a recomendação contida no manual de primeiros socorros da Volkswagen, de que se deve usar cobertor para abafar as chamas, e, que para derramar o conteúdo de um frasco de um litro ocorre tempo suficiente para despertamento e auto defesa. Dos mesmos foi aberto vista à Procuradoria de Justiça que manifestou às fls.914/916, oportunidade que, valendo-se de dispositivo inexistente no RITJDF, reiterou o pedido de envio dos autos à e.1ª Turma Criminal, que tem à conta de preventa.
Dos documentos trazidos por MAX ROGÉRIO, a Assistência da Acusação manifestou-se à fl.918 e, sobre os documentos apresentados com o parecer da Procuradoria de Justiça e de sua alegação de estar preventa a e. Primeira Turma Criminal, as Defesas de ERON CHAVES OLIVEIRA e TOMÁS OLIVEIRA DE ALMEIDA e de MAX ROGÉRIO ALVES exprimiram os conceitos de fls.920/923 e 925/944, ofertando o último, cópia de decisão de Juízo Americano que modificou outra proferida anteriormente, ditada pela influência da mídia e pela opinião pública, a qual fez-se traduzir por tradutor oficial, fls.957/960.
É o relatório.


O Senhor Procurador de Justiça EDUARDO ALBUQUERQUE

Senhor Presidente, Senhor Relator, eminentes Desembargadores, embora saiba que o Ministério Público pode fazer sustentação por tempo indeterminado, quando na função de custus legis, não vou, aqui, delongar-me mais de dois ou três minutos.
Primeiro, cumpre-me analisar a questão da preliminar levantada pelo ilustre advogado, Doutor Luiz Eduardo Greenhalgh, da tribuna desta sessão, matéria que já foi objeto de pedido da ilustre Procuradora Sandra Mendes Neiva, nos autos, requerimento dirigido ao ilustre Relator.
Ao que me parece, no caso, não haveria a prevenção, porque julgou-se, realmente, primeiro, o Mandado de Segurança na Câmara Criminal.
Sabemos todos, que a Câmara é a reunião das duas Turmas, e o Desembargador Relator, na Câmara, não fica prevento se o processo for para uma das Turmas.
Seria o mesmo que admitir que o Presidente do Tribunal despachasse uma medida liminar e ficasse prevento para julgar, numa turma, quando ele não a compõe.
Demais disso, o processo é primeiro distribuído para a Turma, e, na Turma, para o Desembargador. Se o processo veio para a Segunda Turma Criminal, e, em seguida, notou-se que o Desembargador Joazil M. Gardés está prevento em razão de um habeas corpus, por isso sim, foi para ele. Não deveria ter sido direcionado, como quer o il. assistente de acusação, e como verdadeiramente se posicionou minha nobre colega, que fosse distribuído para a Primeira Turma Criminal, Desembargador Everards Mota e Matos, por ter julgado o Mandado de Segurança.
O Regimento Interno parece-me bem claro a esse respeito, e, à míngua de qualquer outra legislação, o Regimento parece-me aplicável ao caso.
Quanto ao mérito, a questão já foi bem debatida, foi bem posicionada tanto nas razões de apelo quanto no parecer da Procuradoria de Justiça. E o parecer da Procuradoria transcreve, ipsis litteris, o parecer do Professor Damásio de Jesus, que, a pedido da Procuradoria Geral, emitiu as suas opiniões que estão bem colocadas nos autos.
Não gostaria de delongar-me citando pareceres, lendo trechos ou fragmentos do parecer do Professor Damásio de Jesus, porque fica-me parecendo que Vossas Excelências não o leram. Então, eu me desculpo e reporto-me integralmente ao parecer ofertado pela Procuradoria de Justiça.
Muito obrigado.


O Senhor Desembargador JOAZIL M. GARDÉS - Relator

Antes de proferir o meu voto, apresento à família de GALDINO DOS SANTOS as minhas condolências. Faço-os saber que muito senti a sua morte, ainda mais que, até aos três anos de idade, vivi em uma aldeia indígena, em que o meu pai, na função de “Auxiliar de Sertão”, era responsável pelo posto indígena “SIMÕES LOPES”, (vinculado à 6ª Inspetoria Regional do Serviço de Proteção aos Índios - SPI), no Estado de Mato Grosso, às margens do Rio Paranatinga, onde vivem os índios Bacairis. Lá, sendo minha mãe a professora dos pequenos curumins, com eles brincava e vivenciava os folguedos da infância, inclusive com os banhos, quase diários, nas águas turvas do piscoso rio; por tudo isto, faço-os saber que tenho na alma profunda identidade e laços que me prendem às nações indígenas e sentimento pela proteção que a FUNAI e muitas missões religiosas a elas fingem proporcionar; pela negligência do Poder Central na demarcação de suas terras, tão gananciosamente usurpadas por grileiros de todas as espécies, deixando-os na penúria; pelos males que as suas puras constituições físicas são acometidas, pelos vícios que os aviltam e corrompem; e pelas doenças que lhes são transmitidas pelos brancos, sem contar as afrontas às suas dignidades, vítimas que são as suas filhas e mulheres, muitas vezes violentadas. Confio que um dia, todas essas injustiças serão reparadas; tenho certeza.


VOTOS

O Senhor Desembargador JOAZIL M. GARDÉS - Relator

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

PRELIMINAR

Como uma questão prejudicial, cuido do pedido de estudo de estar preventa a e.1ª Turma Criminal para processar e julgar o recurso, formulado pela ilustre Procuradora de Justiça, doutora SANDRA MENDES GONZAGA NEIVA, e sustentada da tribuna pela Assistência da Acusação, a entendimento de que o e. Desembargador EVERARDS MOTA E MATOS, integrante daquela fração julgadora, em data anterior às das impetrações dos HBC nºs 7651/97 e 7772/97, perante a Câmara Criminal, foi Relator do MSG nº 7254/97, impetrado pela JUSTIÇA PÚBLICA “contra ato da Excelentíssima Srª Drª Juíza Substituta da Vara do Tribunal do Júri da Justiça do DF e Territórios, que se deu por competente para julgar o assassínio do índio “pataxó” em detrimento da competência constitucional da Justiça Federal” (acórdão, fls.617/619). Dispensável dizer, quanto a decisão do mandamus.
A incompetência do juízo se argúi através de exceção, por meio de petição ou verbalmente, no prazo de defesa (CPP, art.108) e se processa em autos apartados (CPP, art.111).
O primeiro óbice que vislumbro a se antepor, ao exame do pedido, é o da sua extemporaneidade, vez que os autos foram conclusos à douta Procuradoria de Justiça no dia 1º de outubro de 1997, e, no dia 13, do mesmo mês e ano, foi que argüiu estar preventa a e.1ª Turma Criminal, sabendo-se que o prazo para essa diligência é de oito (8) dias, aqui aplicando, por analogia, o prazo previsto para o oferecimento das razões (CPP, art.600), porquanto o prazo a que se refere no artigo 108, do Código de Processo Penal, diz respeito à Defesa, no tríduo, para as primeiras alegações, o qual tenho que não se aplica ao Ministério Público em segunda instância, ainda que a Procuradoria de Justiça, no julgamento dos recursos não seja considerada como parte e oficie tão somente como fiscal da lei.
O segundo, porque, em sendo a Câmara Especializada integrada pelos componentes das duas Turmas Criminais, a distribuição de Mandado de Segurança ou de qualquer outro feito, a um dos seus membros, não previne a competência da Turma a que pertença o magistrado, para o julgamento dos feitos que se lhe seguirem. Se assim fosse, por força da prevenção, os HBC nºs 7651/97 e 7772/97, não teriam sido distribuídos à e. 2ª Turma Criminal, mas à 1ª Turma Criminal.
Aliás, a competência por prevenção, diz respeito a ato da autoridade com carga decisória capaz de demonstrar ter o magistrado conhecimento do fato incriminado (STJ - C.Comp.650 - 3ª Seção) e não da Turma a que, eventualmente, esteja ele vinculado, sendo de se notar que, em segundo grau, “o conhecimento do habeas corpus torna preventa a competência do relator para todos os recursos posteriores” (Código de Processo Penal Anotado - Prof. DAMÁSIO DE JESUS, nota ao art.83). Foi o que sucedeu. Fui o relator do HBC nº 7651/97, daí, porque, tornei-me prevento para o julgamento deste recurso.
Ademais, cabe observar, que não tendo a V. Câmara Criminal competência para processar e julgar recurso em sentido estrito, afastada fica a possibilidade de se tornar preventa essa ou aquela Turma, em razão de haver Desembargador que a compõe, por primeiro, conhecido de matéria correlata ao feito.
Destarte, rejeito a questão prejudicial e declaro estar preventa esta e. Turma Criminal para, sob a minha relatoria, processar e julgar o recurso.


O Senhor Desembargador GETÚLIO PINHEIRO – Presidente-Vogal

Meu voto é acompanhando o eminente Relator quanto à preliminar.
O Mandado de Segurança foi distribuído ao eminente Desembargador Everards Mota e Matos como integrante da Câmara Criminal. De acordo com a parte final do art. 62 do Regimento Interno, não há prevenção se a decisão já houver transitado em julgado ou não trate de matérias correlatas. Ora, o objeto do Mandado de Segurança era apenas para estabelecer a competência da Justiça Federal, no qual não se discutiu matéria objeto do presente recurso.
Rejeito, pois, a preliminar.


A Senhora Desembargadora APARECIDA FERNANDES – Vogal

Senhor Presidente, a preliminar arguída não tem qualquer sustentação jurídica e a matéria foi bem discutida por Vossa Excelência e pelo eminente Relator, por isso, também, a rejeito.


MÉRITO

O Senhor Desembargador JOAZIL M. GARDÉS - Relator

Antes de enfrentar as questões postas no Recurso em Sentido Estrito, faço ligeiro caminhar pela História do Cristianismo, trazendo à reflexão o simulacro de julgamento a que foi submetido JESUS DE NAZARÉ.
Era meia-noite do dia 7 de abril, sexta-feira. No Horto das Oliveiras, milhares de fantasmas planavam sobre as copas das oliveiras e JESUS e seus discípulos embrenharam-se no olival, enquanto DAVI ZEBEDEU e JOÃO MARCOS mantinham vigilância extra, cobrindo o flanco oriental do acampamento e o caminho junto à porta de entrada do horto. JESUS orava. PEDRO, JOÃO e TIAGO dormiam. Com voz apagada e suplicante o Galileu exclamou :

“Abbá! ... Abbá”,
palavra aramaica que significa “papai” e murmurou de novo:

“Abbá! Vim a este mundo para cumprir a tua vontade e assim tenho feito ...Sei que é chegada a hora de sacrificar a minha vida carnal ... Não o recuso, desejaria saber se é tua vontade que eu beba este cálice. ... Dá-me segurança de que eu, com minha morte, te satisfaça como fi-lo em vida.”,

então, o suor que corria de seu rosto, converteu-se em sangue; gotas de sangue rolaram do couro cabeludo, até perderem-se no bigode e na barba, momento que desceu do céu um anjo e o reconfortou.
JESUS guardou silêncio, inclinou a cabeça, cerrou os olhos e voltando a olhar ao céu exclamou:

“E agora Pai meu, se este cálice não pode ser afastado ... dele beberei. Que se faça tua vontade e não a minha ...”.

À uma hora e quinze minutos da madrugada o Nazareno abandonou o Getsêmani e foi interceptado pelos legionários da Fortaleza Antônia, seguidos de quarenta a cinqüenta levitas armados de bastões e maças com cravos. JUDAS se adiantou; JESUS dele se esquivou e dirigindo-se aos soldados, perguntou-lhes o que buscavam e ao responderem: JESUS DE NAZARÉ, a eles se identificou, levando-os a retrocederem e caírem; nessa ocasião, JUDAS acercou-se do MESTRE, abraçou-o, e deu um beijo na sua fronte; JESUS afastou o abraço e se entregou ao oficial romano, sendo amarrado com os braços atados às costas, pelo guardião do Sinédrio, o sírio MALCHUS ou MALCO e, uma vez imobilizado, foi levado a Jerusalém.
Faltavam dez minutos para as duas da madrugada; JESUS foi conduzido ao palácio do ex-sumo sacerdote ANÁS, onde foi retido e interrogado, até que os saduceus, escribas e fariseus, comprometidos com a trama o apresentasse diante do sumo sacerdote CAIFÁS.
Eram duas e quinze da madrugada quando ARSENIUS, o oficial romano, entregou o prisioneiro ao chefe dos Levitas e ordenou a um dos legionários que o acompanhasse, para evitar a sua morte, sem que fosse consentida por PÔNCIO PILATOS, e permitiu que JOÃO, o Evangelista, o seguisse o tempo todo.
No pátio, SIMÃO PEDRO, por quatro vezes negou ser um dos discípulos do Galileu. Dali, o Mestre foi transferido para o Sinédrio, onde estava instalado o Tribunal para o “julgamento”.
Vinte e três sacerdotes compunha o “Sinédrio Menor”, com competência em matéria criminal, e mais integrantes do “Sinédrio Maior”, ladeados por dois escribas, formavam o Tribunal. JESUS foi colocado de frente a estes Juízes, presidido pelo sumo sacerdote JOSE BEN CAIFÁS. Ouviram-se as testemunhas compradas pelo Sinédrio, que depuseram contra os ensinamentos e a pessoa do Galileu, centrando os seus ataques nas violações dos sábados e das leis mosaicas, convertendo a sessão em uma farsa, diante das contradições dos perjuros, o que levou alguns Juízes, envergonhados, a baixarem a cabeça e agitarem-se, nervosamente, nos assentos. Um dos últimos testemunhos, acusou o Mestre de “homicídio frustrado” por desafiar, no episódio que salvou uma adúltera da lapidação popular, “aquele que estivesse livre de pecado a atirar a primeira pedra”, considerando aquele gesto como incitatório ao assassínio (pela lei judia era considerado culpado aquele que golpeasse o próximo com uma pedra, de maneira tal que pudesse ser morto).
Terminado os “depoimentos”, CAIFÁS perguntou ao Mestre se não responderia às acusações, tendo este permanecido em silêncio, silêncio que enfureceu CAIFÁS. Nessa ocasião, ANÁS procedeu à leitura das acusações, que não mereceram qualquer resposta de parte de JESUS. Ameaçador, CAIFÁS, ordenou dissesse ser o Libertador, o filho de Deus. Ouviu-se a resposta, em voz potente:

“Sou ... E irei logo para junto do Pai. Em breve, o Filho do Homem será revestido de poder e reinará de novo sobre os exércitos celestes.”.

Em sua fúria, CAIFÁS desferiu uma bofetada na face esquerda do Mestre, ferindo-lhe o pômulo com os anéis. JESUS baixou os olhos.
Os Juízes continuaram a vociferar:

“Morte ...! Morte ...!”.

ANÁS sugeriu fossem reunidas novas acusações que pudessem comprometer o réu perante a autoridade romana, ao que se opuseram os sacerdotes, diante da possibilidade de vir PÔNCIO PILATOS a deixar a Cidade Santa, voltando para Cesaréia; a seguir, abandonaram a sala e, um após o outro, cuspiram no rosto do Mestre. Foram trinta cusparadas, que levaram JOÃO a vomitar, impressionado pelas repugnantes expectorações. Dessa forma, concluíram a primeira parte do “julgamento”. Eram seis e meia da manhã.
De mútuo acordo, CAIFÁS e seus adeptos retiraram-se do Tribunal e reduziram as vinte e quatro horas de reflexão e jejum, que deviam preceder à emissão da sentença, para trinta minutos.
Nesse período, o Nazareno foi levado para um cômodo de reduzidas dimensões, onde policiais e criados do templo se recostavam. Momentos depois, um grupo de mercenários se acercou do Mestre, desfizeram-no de seu manto e passaram a interrogá-lo sobre seus discípulos, aos quais chamavam de “cúmplices”. Diante do seu silêncio, ocorreu novo esbofeteamento, que o fez cambalear mas permaneceu sereno, sem deixar escapar um único gemido, fato que avivou o furor dos Levitas a recrudescer o castigo, fazendo derramar boca-a-baixo, um cântaro de água, tendo um dos esbirros lançado um pontapé contra o baixo ventre, fazendo JESUS gemer, ao tempo que caiu batendo o rosto no chão. Nesse instante o legionário interveio, para que não fosse morto. Os Levitas cobriram-lhe a cabeça com o roupão e impingiram atrozes golpes de bastão no rosto, para que adivinhasse quem o golpeava. Era o chamado jogo MUINDA. JESUS tinha o rosto desfigurado pela brutalidade do castigo.
Pelas sete da manhã, o Nazareno retornou para enfrentar o Conselho. ANÁS insistiu na idéia de redigir acusações que comprometessem o Rabi com a Justiça que PILATOS representava. Naquele momento, três fariseus renunciaram a continuar participando do “julgamento”, porque não podiam tomar parte daquela ilegalidade “a menos que o Nazareno fosse conduzido perante PÔNCIO PILATOS e uma vez que se lhe fizesse saber por que motivo fora condenado”. CAIFÁS suspendeu a sessão.
Às sete e meia da manhã, os saduceus, os escribas e uns poucos fariseus, desfilaram diante de JESUS, e CAIFÁS ordenou tomassem o caminho do quartel-general romano. Faltava pouco para as oito da manhã quando o cortejo chegou à Torre Antônia. PILATOS perguntou-lhes quais as acusações pendiam sobre aquele homem ao que um dos saduceus disse ser um malfeitor. PILATOS perguntou-lhes por que não o julgavam de conformidade com as lei judias? Perturbados responderam que precisavam que ele ratificasse a sentença de morte. Nesse momento PILATOS informou que não o condenaria sem julgamento, nem o interrogaria sem que lhe fosse entregue por escrito as acusações. Nesse instante, CAIFÁS fez a entrega de um rolo a um dos escribas e rogou, ao Procurador Romano, ouvisse as “acusações”.
Ao ser feita a leitura, PÔNCIO PILATOS compreendeu que se tratava de uma vingança contra aquele que foi capaz de desafiar a autoridade do sumo pontífice e ridicularizar as castas religiosas. PILATOS indagou ao Galileu o que tinha a alegar em sua defesa. JESUS não levantou o rosto, sendo conduzido ao interior da casa, permanecendo CAIFÁS e os Juízes do lado de fora.
PILATOS retomou o interrogatório, não antes afirmando não acreditar nas acusações. CAIFÁS e os saduceus passaram a gritar, tendo um dos sinedristas censurado o Procurador, daí porque PILATOS mandou fosse o Galileu levado a HERODES ANTIPAS, Tetrarca da Galiléia (HERODES ANTIPAS era filho de HERODES o Grande, aquele que determinou a matança dos inocentes).
CIVILIS conduziu JESUS a HERODES, com ordem de trazer as conclusões, após o interrogatório.
Na manhã de sexta-feira, véspera da Páscoa, num gesto de amizade e simpatia de Roma para com os seus súditos, os judeus desfrutavam da prerrogativa de subir até as imediações do Pretório, para assistirem a libertação de um preso e o nome que soava com mais força era o de BARRABÁS, membro ativo do grupo revolucionário “zelote”.
O interrogatório por HERODES foi breve e estéril. Às perguntas JESUS não deu uma só resposta. HERODES temia fosse o Galileu a reencarnação de JOÃO BATISTA, primo de JESUS, a quem ele assassinou a pedido de sua amante HERODÍADES, mulher que tomou de seu irmão FELIPE, Tetrarca da Peréia.
Fazendo devolver o prisioneiro a PILATOS, HERODES asseverou que não proferia qualquer veredicto porque a Judéia não estava sob a sua jurisdição. A seguir, arrancou de um dos seus sabujos o manto de púrpura com que se cobria e o colocou sobre os ombros do Mestre, em sinal de mofa, manto que foi conservado até o momento da flagelação. A visita tinha terminado.
Eram dez da manhã quando retornaram a Fortaleza Antônia. PILATOS não tardou e dirigindo-se a CAIFÁS, asseverou não ter visto, em JESUS, falta alguma, quando a multidão assomou frente ao Pretório para assistir ao indulto de um réu, no que, manipulada por CAIFÁS e pelos saduceus pediram pela libertação de BARRABÁS, quando perguntado a quem queriam fosse libertado: BARRABÁS ou JESUS DA GALILÉIA.
Inúteis foram os gritos de JESUS, JESUS, proferidos por JOÃO ZEBEDEU, quase rompendo a garganta.
PILATOS foi vencido. Da sua cadeira observou a multidão e perguntou:

“Por que quereis crucificá-lo? que mal vos causou?”;

os sacerdotes gritaram:

“Crucifica-o ...! Crucifica-o ...!”

O vozerio impressionou tanto o Procurador que, assustado, retirou-se do terraço e ao voltar trazia a trágica ordem a CIVILIS, para que fosse o prisioneiro açoitado. Eram dez e meia da manhã. O Centurião lamentou a debilidade do Procurador.
JESUS foi levado ao pátio onde havia uma fonte com a deusa Roma. Os cavalos que ali eram escovados, de lá foram retirados e dezena de legionários se aproximaram para assistirem a iminente flagelação.
O flagrum ou látego curto de cabo de couro e metal, de trinta centímetros de comprimento, de onde partiam três correias de quarenta a cinqüenta centímetros, cada uma, tendo na ponta, pares de astrágalos (ossos do tarso) de carneiro, era portado por um dos verdugos, enquanto o outro tinha nas mãos a plombata, consistente de argolas de ferro de onde saíam duas tiras de couro, providas de um par de bolinhas de chumbo em cada ponta.
O Mestre foi colocado diante de um dos marcos em que se amarravam as rédeas dos cavalos, e despojado do manto de púrpura, bem como do roupão e da túnica que caíram em poças de urina; foi descalço das sandálias e teve os pulsos amarrados, agora, pela frente, sendo agrilhoado na argola metálica do marco, e arrebentada a peça mais íntima do seu vestuário, ficando nu.
PÔNCIO PILATOS se aproximou. Teve início a sessão de tortura, com a contagem dos golpes: UNUS! DUO! TRES! QUATTOUR! QUINQUE! TRIGINTA! QUADRAGINTA! que marcava os quatro ou cinco minutos do suplício. Estava encerrada a flagelação enquanto um soldado despejava no boca do Galileu água com sal, para evitar a desidratação pela profunda exsudação e a perda de sangue pelos açoites.
Para CIVILIS, a intenção era torturar o prisioneiro até o limite, de tal forma que o seu estado pudesse satisfazer e comover o agressivo ânimo dos saduceus. Uma vez esgotada a água, reiniciaram os golpes, quando no DUO-DE-VIGINTI (dezoito) uma das parelhas de astrágalo atingiu-lhe o mamilo esquerdo causando intensa dor que provocou o primeiro gemido do Rabi. O golpe foi tão potente que as cordas se romperam e o Mestre caiu para trás, deixando uma poça de sangue; QUADRAGINTA (na verdade era oitenta). O corpo estava deformado, inteiramente banhado em sangue, eis que surgiu LUCÍLIO gigantesco centurião, conhecido por sua força e crueldade, que tomando o flagrum do legionário desferiu feroz chicotada na parte baixa de JESUS, atingindo-lhe o cóccix, cuja dor reativou o seu sistema nervoso, mas seus músculos falharam e ele caiu de joelhos; um segundo golpe, terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo, oitavo, nono foram desferidos e, a cada um, os legionários repetiam “CEDO ALTERAM” (passo a outra).
A violência era tamanha que os esfincteres dos ureteres se abriram, provocando abundante micção, o que provocou um ataque mais violento de LUCÍLIO que, raivosamente, atingiu os testículos do Mestre.
CIVILIS ordenou parasse e pediu instruções ao Procurador, se deveria continuar o castigo. PILATOS hesitou. A água espargida sobre a cabeça e nuca fez com que JESUS recobrasse os sentidos. Eram onze horas da manhã. Deram-lhe nova dose de água com sal. O castigo foi tão desproporcional que o centurião temeu pela vida do prisioneiro, sendo impossível entender como pode aquele homem resistir-lhe. JESUS foi vestido. Os cavalos voltaram para junto da fonte.
Dois soldados entraram no pátio, levando nas mãos um estranho elmo trançado de sarça espinhosa e simulando uma reverência, enterrou-o na cabeça do Mestre. O alarido da soldadesca sufocou o gemido de JESUS. Seis fios de sangue desceram em sua fronte e têmporas. Não satisfeitos os soldados buscaram o manto vermelho e lançaram-no sobre os ombros do condenado. Outro legionário pôs uma vara entre suas mãos e declarou:

“Salve, rei dos Judeus!”

LUCÍLIO voltou e urinou sobre as pernas, peito e rosto de JESUS DE NAZARÉ. Eram onze e quinze da manhã.
Novamente, JESUS foi levado a PILATOS. A multidão ao pé da escadaria, surpreendida com o lamentável aspecto do réu, deixou escapar um murmúrio. JOÃO ZEBEDEU chorou aos pés de JESUS. Um respeitoso silêncio reinou no pátio. Tentando provocar a piedade dos acusadores, PILATOS exclamou:

“Tendes aqui o homem ...! De novo vos declaro que não o acho culpado de crime algum. ...Depois de castigá-lo, quero dar-lhe a liberdade.”;

O sumo sacerdote e seus homens induziram a multidão a gritar:

“Crucifica-o! ...Crucifica-o! ...”.

Decepcionado, PILATOS perguntou o que fez Ele para merecer a condenação? CAIFÁS invocou a lei sagrada, cuspiu no rosto de JESUS e voltou para junto da ralé. PILATOS levou o Mestre para dentro de sua casa e mais uma vez perguntou:

“De onde vens? Quem és na realidade ...? Por que dizes que és filho de Deus ...?”

a resposta foi desonerando-o de responsabilidade pelo que acontecia.
PILATOS voltou ao terraço e disse estar convencido ter o Mestre apenas cometido falta contra a religião e que não podia condená-lo à morte, ao que CAIFÁS lançou-lhe o repto:

“Se soltares este homem, tú não és amigo de CÉSAR ...! Cuidarei por todos os meios que o Imperador tenha conhecimento disso.”.

PILATOS empalideceu, temendo por sua carreira política. Desmoralizado, vazio de um estrito senso de justiça, cedeu. Libertou BARRABÁS. Um soldado trouxe uma bacia cheia de água. O Procurador introduziu suas mãos durante alguns segundos; depois, erguendo os braços exclamou:

“Sou inocente do sangue deste homem! ...”;

enxugou as mãos e dando as costas a CAIFÁS e à multidão, saudou o NAZARENO e ordenou a CIVILIS:

“Ocupai-vos dele.”.

A sorte havia sido lançada, LONGINO (ARSENIUS) foi escolhido responsável pela escolta. Seguiu-se até o Gólgota onde JESUS foi crucificado.
(FONTE - “Operação Cavalo de Tróia”, de J. J. Benitez, editora Mercúrio, ed.1995).
Senhor PRESIDENTE, Senhores DESEMBARGADORES. Perdoem-me pelo fastio que lhes causei; porém, era preciso, para que o meu posicionamento seja entendido, diante da conduta da mídia sensacionalista em querer substituir o Poder Judiciário, e, sem qualquer base jurídica ou pejo estabelece premissas e manipula a consciência popular, a tal ponto que o Senhor Presidente da República, no dia da Pátria, declarou ao País:

“Não terei sossego enquanto os responsáveis por crimes tais como o massacre de Corumbiara ou, mais recentemente, o assassinato do índio pataxó Galdino dos Santos não receberem punição exemplar.” (Correio Braziliense, Punição para ASSASSINOS DE PATAXÓ, ed.08.09.97, pág.05).

declaração que, pela Defesa de MAX ROGÉRIO, foi cognominada de “verdadeira fanfarronice, em afronta ao princípio e independência dos Poderes.”. É certo que nem toda a mídia pauta por este princípio.
Enfrento o recurso. Os recorridos foram denunciados por crime de homicídio triplamente qualificado e corrupção de menor, por haverem no dia 20 de abril de 1997, por volta das 05:00 horas, juntamente com um menor, jogado uma substância inflamável sobre o corpo de um homem, que dormia no abrigo da parada de ônibus, e ateando fogo, provocaram a sua morte.
No juízo de admissibilidade da acusação, a imputação de homicídio doloso foi desclassificada para o crime de lesão corporal seguida de morte (CP, art.129, §3º). Daí o inconformismo e a interposição do Recurso em Sentido Estrito pela Acusação, para que seja reformada a r. decisão e pronunciados os réus, nos termos da denúncia, a fundamento de que a MM Juíza sentenciante se equivocou ao compreender que os acusados não assumiram o risco de produzir o resultado morte, ao jogarem o combustível e atearem fogo na vítima; que ao Tribunal do Júri, diante do princípio in dubio pro societate é que cabe julgar se comporta ou não a desclassificação; e, finalmente, que os jovens agiram com dolo eventual, cientes do resultado que adviria ao jogarem álcool sobre o corpo daquele que dormia e atearem fogo.
Vejamos o que diz na r. sentença hostilizada:

“... não tem razão a douta representante do Ministério Público quando afirma que a desclassificação só poderá ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri. Se por um lado é certo que também durante a sessão de julgamento, quando da votação do questionário, pode ser operada a alteração da classificação penal, por outro não se pode negar vigência ao disposto no artigo 410 do Código de Processo Penal. Os acusados foram denunciados porque, ao praticarem o crime, teriam agido com animus necandi, na forma do dolo eventual. ... Nas alegações finais, o Ministério Público argumentou: “se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a morte da vítima, no mínimo assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo.” ... Os acusados assumiram a responsabilidade pela prática delituosa. ... O único ponto controvertido é o elemento subjetivo. ... Importante saber se os réus quiseram o resultado morte ou assumiram o risco de produzi-lo. ... Toda conduta humana é finalisticamente dirigida a um resultado. Nosso Código Penal é finalista. ... A denúncia veio fundada no dolo eventual. Pretendem os réus a desclassificação do ilícito , seja para o crime de lesões corporais seguidas de morte, previsto no artigo 129, §3º, do Código Penal, para tipo do artigo 121, §3º, ou o do artigo 250, §2º, do mesmo diploma. Desde já afasto a possibilidade de tratar-se somente de crime culposo, ... Assim, restam somente o homicídio praticado com dolo eventual e o crime de lesões corporais seguidas de morte, denominado “preterdoloso”, ... A linha divisória entre ambos é tênue. ... Para Assis Toledo, “A culpa consciente limita-se com o dolo eventual (CP, art.18, I, in fine). A diferença é que na culpa consciente o agente não quer o resultado nem assume deliberadamente o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só não acontece por erro de cálculo, ou por erro na execução. No dolo eventual o agente não só prevê o resultado danoso como também o aceita como uma das alternativas possíveis.” (Princípios Básicos de Direito Penal - Saraiva - 4ª ed.). O saudoso Heleno Fragoso leciona : “Há dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir o resultado (CP, art.18, I, in fine). Assumir o risco significa prever o resultado como provável ou possível e aceitar ou consentir sua superveniência. O dolo eventual aproxima-se da culpa consciente e dela se distingui porque nesta o agente, embora prevendo o resultado como possível ou provável, não o aceita, nem consente. Não basta, portanto, a dúvida, ou seja, a incerteza a respeito de certo evento, sem implicação de natureza volitiva. O dolo eventual põe-se na perspectiva da vontade e não da representação, pois esta última pode conduzir também à culpa consciente. Nesse sentido já decidiu o STF (RTJ, 35/282). A rigor, a expressão “assumir o risco”, é imprecisa para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento.” (Lições de Direito Penal - 8ª ed. Forense). Segundo a teoria positiva do conhecimento formulada por Frank, que é útil como critério prático para identificar o dolo eventual, ocorre tal tipo de dolo quando o agente diz a si mesmo: “ seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei.”. ...”.

Sua Excelência prossegue citando outras correntes doutrinárias que definem o dolo eventual e conclui:

“... Traçados os balizamentos, tarefa mais árdua é a de pesquisar, no caso concreto, o animus que conduziu os agentes ao crime. Coloca-se o julgador à frente do dilema: “queriam os jovens matar aquele que dormia no abrigo de ônibus ou fazer uma brincadeira cujo resultado foi mais grave do que o desejado? Para obter a difícil resposta sobre o elemento subjetivo, um dos meios é considerar a potencialidade lesiva do meio empregado, dado bastante relevante. O fogo pode matar e foi o que ocorreu, mas sem dúvida não é o que normalmente acontece. ... Por outro lado mais um dado importante evidenciou-se durante a instrução . É que , apesar de terem adquirido dois litros de combustível, logo que chegaram ao locus delicti o conteúdo de um dos vasilhames foi derramado na grama ... A prova técnica por seu turno, também vem ao encontro da versão dos acusados, de que os fósforos foram acesos precipitadamente, enquanto Eron derramava o líquido inflamável sobre a vítima, fazendo-o largar abruptamente o vasilhame. ... As testemunhas que presenciaram a fuga dos réus informaram o estado de ânimo dos mesmos após os fatos: estavam todos afobados. José Maria Gomes asseverou que “quando viu os elementos atravessando correndo a via W3 Sul, eles pareciam estar com muita pressa e desesperados”. ...desespero e afobação não se coadunam com aqueles que agem com animus necandi. ... Por outro lado as declarações prestadas imediatamente após os fatos demonstram que não havia indiferença na ocorrência do resultado. Assim, analisada como um todo, a prova dos autos demonstra a ocorrência do crime preterintencional e não do homicídio. ... O resultado morte, entretanto, que lhes escapou à vontade, a eles só pode ser atribuído pela previsibilidade. ... Como já enfocado, assumir o risco não se confunde , em hipótese alguma, com previsibilidade do resultado. Assumir o risco é mais, é assentir no resultado, é querer ou aceitar a respectiva concretização. É necessário que o agente tenha a vontade e não apenas a consciência de correr o risco. E o “ter a vontade” é elemento subjetivo que está totalmente afastado pela prova dos autos, que demonstrou à saciedade que os acusados pretendiam fazer uma brincadeira selvagem, ... Por mais ignóbil que tenha sido a conduta irresponsável dos acusados, não queriam eles, nem eventualmente, a morte de Galdino Jesus dos Santos. ...Assim, os réus devem ser julgados e punidos unicamente pelo crime cometido que, salvo entendimento diverso do MM Juiz competente, é o de lesões corporais seguidas de morte. Inexiste o animus necandi ..., está afastada a competência do Tribunal do Júri, ...”.

A estes excertos, tenho que merece seja acrescido a justificativa contida no despacho de retratação proferido pela MM Juíza de Direito, em sustentação da sentença impugnada, na parte que copio:

“... Nada veio aos autos que autorize o afastamento da conclusão sobre o elemento subjetivo pois, repita-se, não basta, para que haja dolo eventual, que o agente considere provável que realiza o tipo mediante comportamento nem que esteja consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado. Como consta da sentença, “não é exatamente no nível atingido pelas possibilidades de concretização do resultado que se poderá detectar o dolo eventual e sim numa determinada relação de vontade entre esse resultado e o agente”. A linha divisória entre o dolo eventual e a culpa consciente tênue como já consignado, não é a previsibilidade subjetiva nem a previsão objetiva. Situa-se em aceitar o resultado como decorrência da conduta do agente. E o contexto probatório demonstra que os recorridos não anuíram ao resultado mais grave, embora fosse ele previsível. ... Oportuna transcrição tirada do parecer já mencionado da lição de Logoz, citado por Hungria, que põe em evidência a distinção entre dolo eventual e culpa consciente: “ ...A diferença entre essas duas formas de culpabilidade (dolo eventual e culpa consciente) apresenta-se quando se faz a seguinte pergunta: “por que, em um e outro caso, a previsão das conseqüências possíveis não impediu o inculpado de agir?” A esta pergunta uma resposta diferente deve ser dada, segundo haja dolo eventual ou culpa consciente. No primeiro caso, dolo eventual, a importância inibidora ou negativa da representação por resultado foi, no espírito do agente, mais fraca do que o valor positivo que este emprestava à prática da ação. Na alternativa entre duas soluções (desistir da ação ou praticá-la arriscando-se a produzir o evento lesivo), o agente escolheu a segunda. Para ele o evento lesivo foi como um menor dos dois males. Em suma, pode dizer-se que, no caso de dolo eventual foi por egoísmo que o inculpado se decidiu a agir, custasse o que custasse. Ao contrário, no caso de culpa consciente, é por leviandade, antes que por egoísmo que o inculpado age, ainda que tivesse tido consciência do resultado maléfico que seu ato poderia acarretar. Neste caso, com efeito, o valor negativo do resultado possível era, para o agente, mais forte que o valor positivo que atribuía à prática da ação. Se estivesse persuadido de que o resultado sobreviria realmente, teria, sem dúvida, desistido de agir. Não estava, porém, persuadido disso. Calculou mal. Confiou em que o resultado não se produziria, de modo que a eventualidade, inicialmente prevista, não pode influir plenamente no seu espírito. Em conclusão, não agiu por egoísmo, mas por leviandade; não refletiu suficientemente.” (grifos no original). ... Em relação a corrupção do menor, não vislumbro o motivo pelo qual o Ministério Público lançou nas razões de recurso, estarem presentes os pressupostos para que os maiores sejam julgados pelo ilícito. À evidência, na decisão recorrida não foi afastada a imputação. Nada foi sequer ventilado a respeito do tema, pois tão somente foi desclassificado o ilícito da competência do Tribunal do Júri. A matéria escapa ao âmbito do recurso em sentido estrito. ...”.

Data venia, das exegeses dos fatos postas no Recurso em Sentido Estrito, engendradas pelo Órgão do Ministério Público e acompanhadas pela Assistência da Acusação, de que os acusados agiram com dolo eventual, não comportando por isso a desclassificação, daí porque a decisão deve ser reformada para pronunciar os réus nos termos da denúncia, tenho que o decreto desclassificatório é incensurável e, por isso, faço respeitá-lo.
Já nos bancos acadêmicos se aprende, ao estudar a causalidade psíquica (dolo e culpa) e a teoria finalística da ação (reprovabilidade da decisão de cometer o fato e reprovabilidade de não ter evitado o resultado), que entre a ação e o resultado há um duplo vínculo unindo-os: a causalidade material (objetiva) e a causalidade psíquica (subjetiva); que somente existem duas espécies de crime: doloso e culposo, e que são elementos subjetivos que unem a conduta humana ao resultado; que a finalidade é que determina ou não a culpabilidade, daí existir uma reprovabilidade da decisão de cometer o fato e a reprovabilidade de não ter evitado o resultado; que a reprovabilidade não é a previsão mas a previsibilidade, porque ao homem médio é dado prever as conseqüências do seu ato, daí dividir-se a culpa (latu sensu) em dolo e culpa (stricto sensu). O primeiro pode ser direto, quando o agente quer o resultado, ou eventual, quando assume o risco de produzi-lo. Dolo é a vontade (ação voluntária) mais a previsão (representação) de um fato típico. Na culpa há sempre a previsibilidade e pode ser consciente, quando há uma previsão, ou inconsciente, quando há uma ação voluntária mais a previsibilidade; que o dolo eventual é a parte divisória entre o dolo e a culpa e para distingui-los deve-se verificar a posição do agente. Assim, no dolo eventual o agente assume o risco de produzi-lo - há um vício de vontade e na culpa consciente, embora haja uma ação voluntária, o agente não previu o resultado - há um vício de representação; que na culpa inconsciente não ocorre a previsão, mas a previsibilidade de que venha a ocorrer o resultado, caracterizando-se pela negligência, imperícia ou imprudência; que há casos em que a conduta humana se tipifica de maneira complexa e “as hipóteses mais freqüentes de tipificação complexa são as dos chamados crimes preterdolosos, em que uma ação é, a um só tempo, típica de um tipo doloso, em razão da sua finalidade típica, e de um tipo culposo, em face da violação do dever de cuidado. Temos, pois, o dolo no antecedente e a culpa no conseqüente. Nesta categoria temos a lesão corporal seguida de morte (art.129, §3º); o aborto qualificado (art.127); a rixa qualificada (art.137, parágrafo único), etc...” - (EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI, in Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral, ed. Revista dos Tribunais, ed.1997), e por aí segue-se o aprendizado.
Por que agora quer seja modificado todo esse ensinamento? Não é possível; aliás, a versão dos Recorridos de que visavam uma brincadeira, qual seja, a de assustar a vítima, que dormia em um abrigo de ônibus, acordando-a com fogo no pano que cobria as suas pernas, encontra sustentação na denúncia, que fez registrar:

“Apurou-se, com o incluso inquérito, que os denunciados, após terem-se divertido durante toda a noite, já quase ao amanhecer, procurando dar continuidade à diversão, ao passarem pelo banco da parada de ônibus onde dormia a vítima, supondo ser ela mendigo, deliberaram sobre a idéia de dar continuidade à diversão, (grifei) fazendo do pretenso mendigo uma tocha humana.”.

Como se vê, a intenção dos Recorridos era a de assustar a vítima, não queriam matá-la, mas divertirem-se, porém, o resultado foi mais longe do que o esperado, eis que produziu a morte, por força das queimaduras, resultado que não previram. Não queriam a morte de GALDINO, não anuíram e tampouco aceitaram-na como uma possibilidade, e, de modo algum agiram prevendo esse resultado, a conferir a possibilidade de se admitir que assumiram o risco de provocar o resultado advindo, eis que estavam movidos pelo ânimo de brincar e não o de matar.
Alhures, tive oportunidade de manifestar que o entendimento generalizado é o de que queimadura não mata, tanto que dezena de milhares de queimados são vistos, mostrando as cicatrizes que o fogo deixou em seus corpos; contudo, vivos.
Afirmar que, ao Tribunal do Júri é que cabe julgar se comporta ou não a desclassificação, evidencia uma heresia sem precedentes, uma vez que ao produzir o decreto de pronúncia deve o magistrado analisar as provas que são levadas com a denúncia e produzidas no juízo de admissibilidade, para formar o seu convencimento e decidir pela pronúncia, nos termos da denúncia, ou pela impronúncia, pela absolvição sumária, pelo afastamento de qualificadoras e porque não, pela desclassificação, se discorda da classificação contida na denúncia, conforme previsto no artigo 410 do CPP, vez que não está adstrito a essa classificação, isto porque a decisão de pronúncia não é uma simples homologação da acusação posta na peça acusatória.
Ademais, a desclassificação na primeira fase procedimental, não afeta a soberania do Júri e nem atinge o princípio in dubio pro societate, posto que ainda não se faz presente a garantia constitucional da soberania dos veredictos, a qual só existe após a decisão do Júri, desde que não seja teratológica.
Assim, também por este fundamento, tenho que o recurso não merece provimento.
Penso que, agora, resta explicado o porquê da fastidiosa narrativa que fiz da condenação de CRISTO, acossada pelos Sinedristas e admitida pela fraqueza com que PÔNCIO PILATOS, malgrado tivesse a certeza da inocência do réu e não o considerasse culpado, cedeu aos gritos do populacho de “crucifica-o! crucifica-o!”, limitando-se a lavar as mãos, como forma de inocentar-se do sangue a ser derramado.
As pressões da mídia e da opinião pública, por ela manipulada, são intensas, porém, não lograram fazer com que viesse eu a entender tratar-se de um homicídio doloso, daí porque afirmo: Não é curvando-se às pressões que o Poder Judiciário se fará respeitado, protegido e acreditado; mas, sim, com decisões justas e legais, como neste caso, desclassificando a imputação de homicídio doloso, conforme posto na denúncia, para o crime de lesões corporais seguidas de morte (CP, art.129, §3º), como o fez a doutora SANDRA DE SANTIS, MM Presidenta do Tribunal do Júri.
Resta o pedido de relaxamento da prisão, feito por MAX ROGÉRIO ALVES, conforme posto nas suas contra-razões. Quanto a igual pleito, na r. sentença de pronúncia a MM Juíza assinalou:

“...Por último cumpre examinar se deve ou não persistir a custódia cautelar dos acusados, diante da desclassificação do ilícito. Em princípio, salvo entendimento diverso do MM Juiz a quem couber o julgamento do feito, os réus deverão responder pelo crime previsto no artigo 129, §3º do Código Penal, verbis: art.129 - (omissis) §3º- se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo. Pena - reclusão, de quatro a doze anos. A nova capitulação que se delineia não é afiançável e, como sabido, o fato de os réus serem primários e de bons antecedentes não pode, por si só, desautorizar a prisão fundamentadamente decretada. Por outro lado, persistem, ao menos parcialmente, os motivos que levaram à segregação cautelar. Acrescento que a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça, por maioria, negou habeas corpus impetrado em favor de Max Rogério Alves. Assim, não vislumbrando qualquer maltrato a preceito constitucional que justifique antecipação da decisão que o juiz da causa venha a tomar, deixo de examinar o pedido de liberdade provisória para não subtrair do Juízo competente a direção do processo. ...”.

De igual modo adoto essa decisão. Acrescento, que na sede deste recurso não comporta apreciar o pedido de relaxamento da prisão porquanto foi ele interposto pela Acusação e não pela Defesa e, ainda, porque, no processo penal, não é possível admitir o pedido contraposto, como soe acontece no processo civil. No Juízo a que couber o julgamento dos acusados é que deverá formular pedido dessa natureza.
ISTO POSTO, nego provimento ao recurso e mantenho a capitulação posta no decreto desclassificatório, bem como aquela referente a infração ao que se dispõe no artigo 1º, da Lei nº 2.252/54, contida na denúncia, porque, na sede deste julgamento, não comporta o exame da sua procedência ou não.
É como voto.


O Senhor Desembargador GETÚLIO PINHEIRO – Presidente-Vogal

Durante mais de quinze anos como juiz de vara criminal, tive a oportunidade, por centenas de vezes, de proferir decisões de pronúncia, de impronúncia, de desclassificação e de absolvição sumária. Procurei, sempre, quando convencido da existência de crime doloso contra a vida, resguardar a competência constitucional do tribunal do júri para o exame do meritum causae.
O tribunal do júri tem seus inimigos raivosos, em grande número, mas conta, também, com defensores intransigentes. Incluo-me no pequeno rol destes últimos. No decurso de mais de seis anos como presidente dos tribunais do júri da capital do então Território Federal de Roraima e de Brasília, procurei seguir a lição de Magarinos Torres, que na década de trinta já alertava, em repto aos que preconizavam o fim dessa instituição, para a necessidade de seu aperfeiçoamento, a cargo, sobretudo, de seus presidentes.
Defendi, e continuo a defender, não só a manutenção da instituição do júri, mas a ampliação de sua competência para o julgamento de outros delitos além dos dolosos contra a vida. Jamais abdiquei, todavia, da prerrogativa - mais um dever - de decidir sobre a admissibilidade da acusação formulada em processos instaurados por crimes dolosos contra a vida e outros a eles conexos.
A competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida está assegurada ao tribunal do júri pela Constituição Federal (inciso XXXVIII do art. 5º), com as exceções nela previstas.
Induvidosa sua competência, também, à luz do que dispõe o § 1º do art. 74 do Código de Processo Penal. Cabe ao juiz, no entanto, como prevê o art. 408 do mesmo código, e não à acusação, mandar o réu a julgamento se ficar convencido da existência do crime e de indícios de que é ele seu autor. Da existência de crime doloso, bem entendido, incluídos os conexos da competência do juízo singular, uma vez que cabe a ele, à vista da prova, essa decisão.
O princípio in dubio pro societate só tem guarida se a prova, concernente à autoria e às circunstâncias que excluam o crime ou que possam isentar de pena o réu, lhe é desfavorável. Uma vez que o tribunal do júri é competente para o julgamento de crimes dolosos contra a vida, inconcebível possa o juiz delegar aos jurados tarefa que lhe compete, ou seja, decidir sobre a existência do dolo, integrante do tipo, posto que possam eles, no âmbito de sua soberania, afastá-lo de pronto, pois não vinculados à provisoriedade da capitulação contida na pronúncia.
A r. decisão recorrida dispôs de modo contrário ao postulado pela acusação. Fê-lo, todavia, sem ferir os citados dispositivos do Código de Processo Penal, pois como está na parte inicial do art. 410 desse diploma legal,

“Quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso dos referidos no art. 74, § 1º, e não for o competente para julgá-lo, remeterá o processo ao juiz que o seja. (...)”

Abolido o júri da pronúncia, no Segundo Império, sempre coube à justiça togada decidir sobre a admissibilidade da acusação. E assim continua após o advento da Constituição de 1988, como observa Hermínio Marques Porto:

“À destinação constitucional do tribunal do júri não é de ser acrescida força absorvente e retroagindo à etapa do encerramento do judicium accusationis, com efeito de diminuir o exercício, pelo Juiz singular, de sua atividade judicativa. No momento de opção à pronúncia, à impronúncia, à desclassificação ou à absolvição sumária, o Juiz singular encontra cumpridas fases procedimentais satisfatórias para o entendimento de ter sido realizada uma instrução criminal completa, tanto que pode encerrar o processo com uma sentença de mérito (a sentença de absolvição sumária), tendo, pois, no tratado momento, ele e as partes, tal como no encerramento de procedimentos não escalonados relacionados com ações penais condenatórias, tido amplas possibilidades de verificação do tema acusatório; sendo assim, porque não condicionado a qualquer princípio que imponha excepcional e restritiva atividade de pesquisa das provas, o Juiz singular encontra a liberada possibilidade de absolver ou impronunciar, de pronunciar ou de desclassificar”. (Júri, 5ª ed., págs. 34/35 - Ed. Rev. dos Tribunais).

Ante o exposto, não resta dúvida de que a decisão desclassificatória do delito não afronta os dispositivos citados; se encontra apoio nas provas, é matéria que já foi analisada pelo eminente relator, passando eu a fazê-lo a partir de agora.
A r. decisão recorrida afastou a competência do tribunal do júri com o fundamento de que os réus não quiseram o resultado morte nem assumiram o risco de o produzir. Entre a tênue linha que divide o dolo da culpa consciente, optou por esta última e acenou com a probabilidade de condenação dos réus, no juízo singular, por lesão corporal seguida de morte. Ocorre, contudo, que a pena cominada a este delito varia de quatro a doze anos, ao passo que a do homicídio qualificado vai de doze a trinta.
Não seria exagero dizer que verdadeira comoção causou no país essa decisão, pois os meios de comunicação haviam transmitido a certeza da pronúncia dos réus e da condenação de todos, pelo tribunal do júri, à pena mínima de doze anos de reclusão, podendo chegar a trinta. Não informaram, mas procuraram formar a opinião pública para o resultado do julgamento.
Ousou a eminente magistrada prolatora da decisão deles discordar. Foi o suficiente para que a atassem ao pelourinho, submetendo-a a odioso julgamento público sem o direito de defesa. A decisão da Dra Sandra De Santis está embasada nas provas coligidas nos autos. Louvou-se ela nos interrogatórios dos réus, na polícia e em juízo, assim como na prova técnica, para formar sua convicção de que os réus não agiram com dolo.
Ao afastar o dolo que teria animado os réus, não se limitou a eminente juíza a perquirir a mente de cada qual, mas apreciou, também, as circunstâncias do fato.
Presos em flagrante e conduzidos à delegacia, contaram, sem a assistência de advogado, o que voltaram a repetir, com coerência, em juízo. Pelo que se depreende dos termos dos interrogatórios, não tinham eles consciência do resultado que adviria daquela conduta; não o previram, não o admitiram nem aceitaram o risco de produzi-lo. Agiram, segundo afirmaram, com o só propósito de assustar a vítima. Indubitável que sabiam, pois fruto da experiência humana, que a vítima sofreria queimaduras e, no entanto, não retrocederam. Previsível que ela sofreria lesões corporais. Não afirmaram, contudo, que previram, admitiram e aceitaram o resultado morte. Nenhuma testemunha veio a juízo infirmar essas declarações, o que, aliás, seria despiciendo, pois não poderia penetrar no consciente deles; muito menos o julgador lastrear-se exclusivamente em suas palavras. Corroboram-nas, por outro lado, a prova técnica, conforme consignado na sentença. Segundo eles, teriam utilizado apenas o álcool contido em um dos recipientes. Encontrou-o a perícia sob o banco do ponto de ônibus onde estava a vítima deitada , semi-queimado, o que confirma a versão de que quando estavam a verter seu conteúdo sobre ela um deles antecipou-se e acendeu o fósforo que ateou fogo ao combustível, obrigando a quem o sustentava a largá-lo, precipitando o restante do conteúdo e, conseqüentemente, aumentando o poder de combustão.
Ora, se dois litros de álcool foram adquiridos e somente um utilizado, em sua totalidade, por acidente, correta a decisão que afastou a competência do tribunal do júri por ausência de dolo, pois se a intenção fosse a de matar, teriam usado todo o combustível adquirido. Está a corroborar a versão dos réus, ainda, as declarações do inimputável.
Por tais fundamentos, nego provimento ao recurso, acompanhando, assim, o eminente relator.


A Senhora Desembargadora APARECIDA FERNANDES – Vogal

Senhor Presidente, inicialmente quero manifestar a minha simpatia à nação indígena aqui representada. Quero também prestar minha solidariedade à família de Galdino dos Santos, enlutada em razão de sua chocante morte.
Senhor Presidente, a matéria já foi suficientemente debatida e estou com a egrégia Turma. Desejo, no entanto, ressaltar que o fato de haver a MM Juíza, Dra Sandra De Santis, desclassificado o crime de homicídio, qualificado por três circunstâncias, para o de lesão corporal seguida de morte, não implica impunidade como, erroneamente, vem sendo levada a opinião pública a crer. Com efeito, os recorridos haverão de sofrer punição, sim, mas pelo crime que efetivamente cometeram, que foi bárbaro, e merece severa reprovação, mas que não foi o crime de homicídio qualificado, vez que ausente, por tudo o que se vê nos autos, o dolo de produzir o resultado morte, sequer na modalidade eventual.
Pelo exposto, nego provimento ao recurso para manter na íntegra a respeitável decisão a quo.
É o meu voto.


DECISÃO

A Turma, por unanimidade de votos, conheceu do recurso, rejeitou a preliminar e lhe negou provimento. Unânime.

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