segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Crimes impunes

EU QUERO PAZ // CORREIO BRAZILIENSE, 27/02/2000


Luiz Roberto Fernandes
Da equipe do Correio

Nehil Hamilton

Há mais de seis meses, Beatriz espera que os assassinos de sua mãe sejam presos. O corpo da professora Alda Maria Generoso foi encontrado no porta-malas de seu carro

A família da professora aposentada Alda Maria Generoso, 54 anos, sabe bem o que é impunidade. Alda vivia sua rotina pacata, na cidade de Sobradinho, até o dia 5 de agosto de 1999.
Saía muito pouco — aos bancos, só ia em companhia de algum filho —, tinha como melhor amiga na vizinhança dona Josefa, uma senhora amável, a quem presenteava com roscas saborosas, e cuidava da mãe, diabética.
Naquele dia, uma quinta-feira, Alda desapareceu. Até hoje, ninguém tem explicação para o que aconteceu. O que se sabe é que ela combinou de passar na casa de uma amiga, em Sobradinho.
Algo aconteceu no meio do caminho e o corpo da professora só foi encontrado, dentro do porta-malas de seu carro, na segunda-feira seguinte ao desaparecimento. Localizado a poucos metros de distância do BRB do centro da Ceilândia, de onde foram sacados R$ 500 de sua conta, o corpo de Alda não apresentava nenhum ferimento.
O carro foi deixado ali, perto do Fórum da Ceilândia e da 15ª DP (Ceilândia Centro), por mais de três dias. O corpo só foi localizado quando começaram a pingar gotas do porta-malas, denunciando o mau-cheiro característico de um cadáver.
‘‘Meu irmão registrou queixa na 3ª DP (Cruzeiro), na sexta-feira. Avisamos à polícia que havia sido feito um saque na conta da minha mãe, no BRB do centro da Ceilândia, nesse mesmo dia’’, conta a filha de Alda, a professora Beatriz Generoso Barreto, de 33 anos.
‘‘Houve negligência da polícia. Como minha mãe não tinha nenhum ferimento, acreditamos na hipótese de que ela foi abandonada viva no carro. Se tivessem feito uma busca ali, a poucos metros do banco, encontrariam o carro e ela poderia estar viva hoje’’, pondera Beatriz.
O fato é que, passados mais de seis meses do crime, a polícia não tem pistas do(s) assassino(s) e o Ministério Público não sabe informar sequer onde o inquérito está localizado. ‘‘Não posso ajudar muito. O inquérito está na 15ª Delegacia de Polícia’’, diz o promotor da 3ª Promotoria Criminal de Ceilândia, Isaac Pereira Dutra Filho, para logo depois acrescentar: ‘‘Estou há apenas 15 dias em Ceilândia’’.
Na verdade, o inquérito foi parar na Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos (DRFV), junto com outros 160 calhamaços envoltos em capas de cartolina azul. São inquéritos não solucionados, sem suspeitos presos.
Na delegacia de origem, a 19ª DP, o delegado assistente Jair Francisco ignorava o destino da papelada. ‘‘Foi enviado para a Delegacia de Homicídios’’, afirmou. A burocracia impõe que crimes de morte sejam investigados pela Delegacia de Homicídios (DH). Mas o caso de Alda é, aparentemente, de assassinato durante um assalto, ou seja, um latrocínio. E latrocínio não é caso para a DH nem para a DRFV, e sim para a Delegacia de Roubos e Furtos.
Isso faz com que os inquéritos não resolvidos sejam remetidos para a DRF. ‘‘Nos próximos dias estaremos inaugurando a Delegacia de Latrocínios’’, afirma o diretor da Coordenação de Polícia Especializada (CPE), Arnaldo Siqueira. A expectativa é que, com a inauguração, casos como o de Alda recebam maior atenção.
INDEFINIÇÃO
Enquanto isso, parentes e amigos de Alda aguardam, angustiados, por uma definição. ‘‘Não ficamos tranqüilos sabendo que essa pessoa está solta e pode fazer isso de novo. Quando andamos na rua, ficamos olhando para as pessoas, verificando se elas se parecem com o retrato falado do assassino. Achamos que a polícia nos deve alguma coisa’’, desabafa.
Apesar de a Polícia Civil de Brasília — considerada por muitos a mais eficiente do país — deixar a desejar em muitas investigações, não dá para creditar a impunidade apenas à instituição. Os números exibem uma espécie de funil. As ocorrências registradas são muitas e, os casos julgados, poucos.
Em 1999, 131.516 ocorrências foram registradas nas delegacias do DF. Dessas, 19.168 viraram termos circunstanciados (como se chamam as ocorrências que envolvem crimes cujas penas são inferiores a dois anos de prisão) e outras 14.429 foram transformadas em inquéritos. As demais 97.919 não foram levadas adiante. Isso quer dizer que 74,4% das ocorrências ficaram apenas no registro.
FUNIL
Dos 14.429 inquéritos abertos, 9.414 foram concluídos e repassados ao Judiciário local. Já o número de inquéritos concluídos que se transformam em denúncia na Justiça é ainda menor. No ano passado, o Ministério Público ofereceu 7.814 denúncias à Justiça, total que engloba casos resolvidos pela polícia em anos anteriores. Ou seja, se forem contabilizados os 9.414 inquéritos concluídos pela polícia no ano passado, a produtividade do Ministério Público é proporcionalmente ainda menor.
Para o diretor da Polícia Civil do Distrito Federal, Laerte Bessa, esse número de ocorrências em relação ao número de inquéritos abertos e concluídos é bom. ‘‘É um dos melhores do país’’, afirma. Ele, no entanto, não tem em mãos números comparativos com outras capitais.
Já o coordenador da Polícia Especializada, Arnaldo Siqueira, tem outra explicação. Para ele, muitas ocorrências não são levadas adiante porque a tramitação, que começa na ocorrência e termina no inquérito, é mal feita nas delegacias. ‘‘A ocorrência muitas vezes é levada à Seção de Investigações Criminais para, só depois, se os investigadores conseguirem algo, ser aberto um inquérito. Justamente o inverso do que deveria acontecer’’, diz Siqueira. ‘‘Muitos casos também são de acidentes de trânsito, por exemplo, ou outras ocorrências menores’’, conclui.
O promotor Diaulas Costa Ribeiro, coordenador da Promotoria Pró-Vida, que por muito tempo atuou na área criminal, crê que muitas vezes os inquéritos não são cuidadosamente analisados pelos promotores.
‘‘O delegado envia o inquérito para a Justiça, pedindo ao promotor que lhe conceda novo prazo para concluir as investigações’’, diz Diaulas. ‘‘Muitas vezes, o promotor devolve o inquérito, simplesmente concedendo o prazo pedido. Eu, por exemplo, só devolvo o inquérito requisitando que o delegado investigue o que acho que falta para a denúncia’’, afirma.
O desembargador Hermenegildo Gonçalves, presidente do Tribunal de Justiça do DF (TJDF), por sua vez, argumenta que a Justiça é pautada pelo Legislativo. ‘‘Trabalhamos com as leis que estão aí’’, diz.

Promotores e delegados disputam o poderEnquanto Polícia e Ministério Público brigam por mais poder, processos somem no labirinto burocrático dos tribunais





‘‘Restringir prazos e diminuir diligências’’ são duas soluções apontadas pelo desembargador Hermenegildo Gonçalves para melhorar a eficiência da Justiça. Enquanto o presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal prega maior agilidade nos processos, integrantes do Ministério Público (MP) e os delegados da Polícia Civil do DF têm opiniões distintas sobre soluções.
Os delegados querem maior poder para investigar. O MP, por sua vez, quer que os delegados se dirijam diretamente aos promotores. Em meio ao desencontro de idéias, a burocracia prevalece.
Um exemplo claro de como a solução para um crime pode se perder no emaranhado de teias confeccionado pela burocracia é o caso do latrocínio que teve como vítima o entregador de bebidas Gilberto Cerqueira de Souza, de 25 anos. Ele foi morto com um tiro na cabeça, no dia 28 de agosto do ano passado, enquanto trabalhava, em Ceilândia.
O inquérito policial número 369-99, instaurado pela 19ª DP (Ceilândia Norte) logo depois da morte de Gilberto, só foi enviado ao Fórum da Ceilândia quarenta dias depois de aberto, excedendo o prazo máximo de um mês. Passou por duas varas criminais e circulou entre Promotoria, vara criminal e delegacia por seis vezes — em cada repartição —, indo e voltando repetidamente aos mesmos lugares.
Nesse meio tempo, os agentes da Seção de Investigações Criminais da 19ªDP prenderam Clebiomar Félix Evangelista, 19 anos, com várias passagens pela polícia. O mandado de prisão temporária foi expedido por um juiz da 2ª Vara Criminal e, no dia 14 de dezembro, um juiz da 1ª Vara Criminal relaxou a prisão. Enquanto Clebiomar estava preso, os agentes da Sic descobriram que o verdadeiro assassino era Gérson Santo Antônio, um menor que foi assassinado nas ruas de Ceilândia depois de ter cometido outro homicídio.
No dia 24 último, o inquérito não foi localizado pela equipe do Correio nos lugares onde poderia estar: nem na 1ªvara Criminal, nem na 1ª Promotoria Criminal, nem na 19ªDP nem na Corregedoria da Polícia Civil. (LRF)






Ritual







Como é
Em 28 de agosto de 1999, Gilberto Cerqueira de Souza, 25 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça. A ocorrência foi registrada na 19ªDP (Ceilândia Norte), que instaurou inquérito.
O inquérito deveria chegar à Justiça, no máximo, trinta dias depois. Só chegou no Fórum de Ceilândia em 8 de outubro. Foi enviado à 2ªvara Criminal, ao Ministério Público (MP) e devolvido à delegacia de origem.
Em 4 de novembro, o inquérito retorna à 2ªVara Criminal, vai para o MP e é devolvido à delegacia.
Em 29 de novembro, é redistribuído para a 1ªVara Criminal, segue para o MP e retorna à delegacia. Isso se repete em 2 de dezembro, 9 de fevereiro e 23 de fevereiro.
Em 24 de fevereiro, ninguém sabe onde está o inquérito. Nesse meio tempo, um suspeito, Clebiomar Evangelista, é preso e só é liberado em 14 de dezembro. Aquele que seria o verdadeiro autor, conhecido como Gérson Santo Antônio, é assassinado em Ceilândia.
Como deveria ser
O criminoso é preso em flagrante pela polícia. A delegacia tem 24 horas para comunicar à Justiça a prisão.
O delegado tem 10 dias para concluir e enviar o inquérito policial para a Justiça.
O Ministério Público oferece denúncia em cinco dias, no máximo.
O interrogatório do preso acontece em até oito dias.
A defesa tem até três dias para apresentar sua versão
vão juiz.
O prazo para a instrução, oitiva dos depoimentos de testemunhas, é de oito dias.
Acusação e defesa podem realizar novas diligências. Cada um tem um dia para fazer isso.
A Acusação pode usar três dias para fazer as alegações finais. A defesa conta com o mesmo prazo.
A sentença deve sair em dez dias depois das alegações finais.
Se em 81 dias o réu não for julgado, ele é solto. Este rito é chamado de Procedimento Comum Ordinário.

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